Ele, Professor de História da Arte, 45 anos, situação econômica média, mas estável, adora cachorros, tem 5. Ele, 17 aninhos, Seminarista, vem de uma família muito pobre, do interior do estado, também adora cachorros. Ele, conheceu Ele numa igreja em Minas Gerais. Foi um choque! Ele se parecia muito com o anjinho barroco esculpido e preso no altar, que estava atrás de sua cabeça. Ele se encantou e chamou ele para que, depois da aula que estava dando, o levasse para conhecer o claustro. O altar, as naves, as abóbadas, os alunos, os santos, o ouro, os artistas, as obras sacras. Depois da aula ele voltou. Campainha, porta rangendo, fresta, escuro, passos no granito. Ele entrou desinibido e confiante. Ele, meio sem jeito, porém com um tremor que o impelia adiante, levou ele para dentro do convento. Sentia-se que ele queria, mas tinha medo. Ele pegou ele pelo braço e com carinho pediu explicações sobre isto e aquilo. Como se ele soubesse mais do que ele, professor vivido que já tinha visitado inúmeras vezes o lugar. Ele apontava os lugares, e numa vozinha miúda explicava. Ele era todo ouvidos. Ele lhe deu um cartão com seu telefone e endereço, que ele se apressou em colocar dentro da batina. Deambulatório, celas, tumbas, jardim, frades, crucifixos, frio. No dia seguinte, ele viajou com seus alunos.
Meses depois, num sábado, ele recebeu um telefonema. Com a mesma voz sumida, ele pedia desculpas, dizia que tinha abandonado o hábito e estava sozinho na cidade. Ele não conhecia ninguém, só ele. Mais uma vez, desculpas, ele tinha muita vergonha e tal. Será que ele se importaria em deixar ele dormir em sua casa por uns dias? Ele ficou quieto, os cachorros latiam, ele não falava nada; então, ele novamente se desculpou e rapidamente desligou. Ele ficou furioso. Não deveria ter feito aquilo, deveria ter sido mais hospitaleiro, mais humano, não era justo que ele dormisse ao relento, somente porque ele não tinha tido coragem de recebê-lo em casa. Ele pegou uma garrafa de vinho, ligou o rádio e se sentou. Um grande cachorro deitou em cima de seus pés. Bem ao lado do telefone, estavam as chaves do carro. E agora? Esperar… Quando o programa de clássicos estava terminando, o telefone tocou, apenas uma vez e ele atendeu com sofreguidão. Era sua mãe. Não ligava há tempos, não dava mais bola para ela, não era mais o filho querido? Ele respondia com impaciência, sabia que a qualquer momento ele poderia voltar a ligar. Ele queria se livrar do falatório de sua mãe, respondia monossilábicamente. De repente ele teve uma idéia. Sua mãe não acreditaria que ele pudesse desligar assim, à toa. No meio de uma frase, ele apertou o gancho, desligando o telefone, como se a ligação tivesse caído. Então, como uma criança, se encostou na Bergére, roendo as unhas, um gole, coçando as costas de uma cachorrinha no colo. Música, vinho, cachorros, entardecer. Nada…, ele esperava e nada. A noite chegou. Ele foi para o banheiro e resolveu tomar uma chuveirada. Calça, camisa, meia, cueca, espelho e… Correu para o telefone e lá estava sua mãe de novo! Que a Companhia Telefônica, que o calor, que a empregada, que ele não ligava, que os cachorros eram mais importantes que ela, que a solidão… Ele relaxou, afinal, mãe é mãe. Ouviu durante quase meia hora, ainda por monossílabos respondia e sempre concordava. Ele foi ficando em alfa, a voz da sua mãe foi se tornando um mantra. Se balançava nu, com o telefone na mão, como um maestro diante de uma orquestra. Dinheiro, custo de vida, solidão, ingratidão, solidão, assaltos, violência, solidão.
Ao longe um ruído familiar, o tirou do transe. Desligou sem prestar atenção e foi abrir a porta. Ele tinha se esquecido que estava nu, e quando ele, do outro lado da porta o viu daquele jeito, ficou com as bochechas vermelhas e olhou para baixo. Latidos, latidos e mais latidos. Ele acalmou os cachorros e virando de costas entrou. Ele não sabia muito o que dizer, sem graça, disse que ele esperasse. Ele entrou com a sua mala de papelão e ele correu para o quarto vestir algo. Ele praguejava, isso lá era hora para receber alguém? Principalmente ele, que vivia em seus pensamentos desde o dia em que se conheceram. Ele nunca se vestiu tão rápido! Abotoando o short bem colado, ele entrou na sala. Ele mais uma vez de cabeça baixa, repetiu a ladainha, a cidade, o convento, a família, o seminário. Ele, mais calmo, ouvia apreciando as palavras, tudo bem, ele não falara nada no telefone porque fora pegado de surpresa. Ele realmente não esperava, não que não estivesse gostando. Ótimo, tudo maravilhoso, ele poderia ficar com ele, ele arranjaria um colchonete, ele faria comida, ele… Ele, muito envergonhado, segurava um cartão entre os dedos. Ele reconheceu de imediato, o cartão, sujo e amarrotado. O cartão tinha sido a sua esperança. Ele se calou. Colocando a cabeça no lugar, falou para ele sentar. Vamos, vamos falar da sua decisão, porque abandonar tudo, porque vir para o Rio, porque ir até ele? Eles conversaram até de madrugada. Sentado no chão, com os cachorros ao redor, ele falava e ele sentado ao lado, sorria de toda aquela ingenuidade. Ele pegou no sono primeiro, e ele com um gesto maternal cobriu ele com um sono leve colorido. Domingo de manhã, os ovos fritos encheram o apartamento. Os cachorros latindo, lambiam o rosto dele. Ele se levantou e correndo com pequenos passos foi para o banheiro. Ele bateu na porta. A toalha, o sabonete, onde estava o shampú, como ligar o gás.. Ele abria a porta, apenas uma fresta, sem se deixar ver, recebia as instruções. O banho ficou quente demais? Ele se queimou? Não estava acostumado à essas coisa da cidade, o que fazer com o tal shampú? Será que era melhor deixar ele entrar? Ele dava gritinhos com a água quente, e, ele não aguentou e entrou no banheiro. Afastando a cortina do box, olhando diretamente nos olhos dele, misturou a água tornando-a mais morninha. Ele agradeceu e seguiu se ensaboando. Água, sabão, esponja, calor, cheiro, pele. Ele aproveitou a oportunidade. Do lado de fora do box, como um professor diante da classe, começou a falar belas palavras. A vida, a cidade, os caprichos do destino, o amor, ele soltava o verbo como o mestre que era. Ele terminara o banho mas não tinha coragem de sair. Ele então, virando de costas disse que ele saísse e que pegasse a toalha, se enxugasse; que frio! Com o rabo do olho ele olhava, magriço, com o abdômen contraído, quase sem pelos, ele se secava esfregando a toalha com força. Um cachorro entrou e começou a lamber a perna dele. Susto, pára…, sai…, que inconveniente…, desculpas, risos. Calma, não vá se machucar, bote a cueca, ponha perfume, penteie o cabelo. Saíram juntos e ele como uma criança foi direto para a cozinha. Ovos, bacon, torradas, suco de laranja, leite, biscoitos, pão. Comendo como um Abade. A expressão não saía da cabeça dele. A violência da fome. O prazer de matá-la. Cercando a mesa, ele se esmerava em oferecer coisinhas. Mais biscoito, chá? Ou café com leite? Estava tudo bem, gostoso, mais? Vamos, pode comer… Ele se levantou, limpou a boca, guardanapo de papel! Vamos passear, é domingo, vou lhe mostrar a cidade, amigos, pontos turísticos, almoço, praia. Palavra mágica. Então ele nunca vira a praia? Como viera da rodoviária? Todo o dinheiro roubado? Táxi preto? Não existe. Que violência, cidade grande, não chore, vamos arranjar tudo. Quarto, short, toalha, guarda-sol, protetor solar, óculos escuros, jornal.
Sol, rua, trânsito, carros, enfim um táxi amarelo. Areia, brilho, sol, pessoas, mar, água, muita água. Tudo era água. Correndo ele entrou dentro do mar. Deixando com cuidado as coisas na areia, o senhor poderia dar uma olhadinha? Cuidado, que bobo, não entre, olha a onda, menino… Ele sentou e ficou apreciando ele chapinhar n’água. Parecia um sonho. Um Deuzinho, os cabelos encaracolados, o reflexo nos olhos, ai meu Pai, que lindo que ele era! E era só dele. Só, de mais ninguém. Nada de festas, saídas noturnas, noitadas, bebedeiras, mulheres, nada. Que que é isso, afinal sou seu protetor, seu mentor, seu professor, falava projetando o futuro. Ele voltou para a areia, sentou ao lado dele. As pernas se roçaram de leve. Frisson. Pele de galinha, ui, sal, pele rosada, rosada demais, vamos embora, é perigoso, o sol, a pele, raios ultravioleta, infravermelhos. Não, não, voltaremos outro dia, vamos, se vista. Casa. Banho de novo? Roupa nova, vamos para onde? Não, não dá pra ficar? Bobinho, não quer sair? Tudo bem. TV, pipoca, cachorros, Silvio Santos. Ele se divertia, que lindo, batia com a mão no joelho, que legal, seu short curtinho, bem coladinho, molhava o chão. Ficava muito bem nele! Os cachorros brincavam como se sempre ele estivesse estado lá. Silvio Santos, comercial, músicas, pipoca, mais pipoca? Ele não cabia em si de tão contente, era tudo o que sempre sonhara. O amor puro, puro até demais, a inocência, a pureza. Ah, a pureza. Não quis interromper aquela cena. A integração dele com a casa era perfeita. Com dois cachorros no colo, ele sacudia a cabeça e dizia que não acreditava. Grécia, os efebos, os Deuses, os amores, a história, a libido, as pinturas, os afrescos, a Grécia, toda ela dentro do seu apartamento. E Roma? Ele foi ficando sonolento, já não prestava tanta atenção na TV. Ele sugeriu, dormir, relaxar, cama, tudo bem, é de casal, venha, é muito mais confortável, bobo, não tenha medo, vem, vamos, deixa de manha, já pra cama! Escova, pasta, água, toalha, espelho, um pouquinho de perfume que vale a pena, pijama novo, robe de seda, chinês legítimo, uma amiga trouxe. Sandália de pano, andou na ponta dos pés até o quarto. Ele foi desligando as luzes da casa pelo caminho. Os cachorros, cada um buscava seu canto. A casa parecia perfeita, cada coisa em seu lugar, todas as criaturas felizes, ele pegou o livro e foi para a cama. Precisava apresentá-lo à Adriano. Margheritte Youcenar se encarregaria, era bom demais… Ah Adriano…
O abajur, meio torto dava um toque dramático, ele estava todo encolhido, com as cobertas acima da cabeça, que lindo, os pés estavam de fora. Cada pequeno detalhe parecia proposital. Ele achou que tinha pouco perfume no ar. Vaporizou Fleur de Rocaille, forte, propositadamente forte, dava um clima. O robe de seda foi para cima do abajur. Lilás, o abajur se tornou lilás, sorriu. Ele entrou para dentro do cobertor com todo o cuidado, o lençol se separou da coberta e descobriu o ombro dele. Lindo. Travesseiros, óculos de perto, mais travesseiros, o livro, ele se mexeu um pouco e pronto, tudo perfeito. Já ouviu falar de Adriano, o Imperador, Adriano?
…
Ele se mexeu, resmungou algo e continuou virado.
Vamos, dê uma olhada, é a história de um Imperador, um descendente dos Deuses.
…
Vamos, deixa de ser estraga prazeres!
A mão tocou o pescoço chamando. Sem resposta, a mão fez uma nova carícia. Nada, só a pele eriçada, Mais uma carícia. Descendo pelas costas, a mão subiu pelo quadril e se refugiou na pequena mata. Delírio dos Deuses.
Gritos, abajur no chão, cobertor para o lado, gritos, agarrado pelos cabelos ele viu os óculos caírem, os cachorros entraram, gritos, a cabeça sacudida, gritos. Nunca, nunca, de novo não, chega! Socos, de pé na cama, pontapés, mais socos, gritos, não, não, basta! Ele perdera a razão, socos, sangue, mãos doendo de tanto bater, sangue, gritos, cachorros, latidos, ele foi perdendo a consciência, o gosto de sangue na boca, os latidos, o ruído das pancadas, só os gritos, ele já não sentia mais nada.
Luz, luz muito forte, sangue, ao longe gritos, ele sentiu a cabeça batendo em algo, um ruído estranho, e nada, nada, nada. Só o silêncio.
Cama desmanchada, Abajur quebrado, porta retratos em pedaços, o corpo no colchão e o rosto no chão, o óculos de perto lá longe Os olhos entreabertos e um sorriso no canto da boca. Ele nunca mais veria Adriano, que a seu lado, aberto por acaso na última página também dizia adeus à vida. Enquanto ele, correndo, fugia daquele inferno.