Para Transbordar, Basta um Grão de Areia

Acordou com o canto do pássaro na janela e sorriu, detrás das pálpebras fechadas. Sabia que o sol espiava para dentro do quarto e a brisa matutina agitava muito levemente as cortinas transparentes. Estirou-se na cama em movimentos lânguidos, depois alisou com cuidado o espaço vazio a seu lado e pensou que há muito estava desocupado, talvez nem mais soubesse dividir a cama com outra pessoa. A sensação de bem-estar arrefeceu por um instante, quando o desejo de um corpo junto ao seu foi mais forte do que a veemência em negar tal necessidade. Então o despertador iniciou a algazarra de sempre e a sombra que lhe turvara os olhos evaporou-se com o sono.
Era o dia do seu aniversário. Dia de festa. Festejava apenas as décadas, misticismo bobo e particular porque sim, era supersticiosa e cheia de manias. Hábito compulsivo de contar as letras das palavras, esperando sempre que o resultado final fosse ímpar porque odiava números pares – não, não tinha nada a ver com o fato de ser divorciada ou viver sozinha desde então – desde a infância. Mania de nunca deixar sapato virado para baixo ou guarda-chuva aberto dentro de casa. Somar andares de prédios pelos quais passava a pé, de carro ou ônibus, com o receio desesperado de virar a esquina antes de chegar à cobertura. O cristal energizado que carregava na bolsa. O banho de sal grosso nos dias menos bons. Tantas outras mais.
Acordou relativamente bem na quarta comemoração de sua existência. Festejariam à noite, no clube: ela, o filho e os amigos. Tinha muitas horas à disposição ainda e só queria relaxar um pouco da semana cansativa no trabalho. E tudo correu tranqüilamente, sem desassossegos, e chegou a hora de se vestir de felicidade, radiante criatura nascendo mais uma vez para a vida.
Em cima da cama o vestido vermelho, longo, decotado, sensual. Ficou admirando-o através do espelho, enquanto penteava os cabelos. Usaria o colar de rubis que o marido já inexistente lhe trouxera sem motivo, no tempo das carícias fartas em que precisavam um do outro o tempo todo e se amavam deliciosamente. Daquela época só havia restado o colar, o filho, alguns poemas e aquelas propostas rabiscadas em guardanapos de papel, repletas de palavras sensuais que eram posteriormente repetidas nos lugares mais exóticos. Em algum momento, porém, o encanto foi extraviado e as coisas não faziam sentido, até o dia em que os dois completos estranhos disseram adeus, com lágrimas nos olhos e um peso indefinível no coração.
Até quando o colar despertaria aquele tipo de lembranças não fazia idéia. Tudo o que possuía tinha sua própria história, como se os objetos adquirissem personalidade e a carregassem pela vida, trazendo à tona sempre as mesmas recordações, sem importar a que tempo fosse. Sim, usaria os rubis naquela noite. Queria estar tão deslumbrante por fora como não sentia do lado de dentro.
Terminou de ajeitar os cabelos curtos, maquiou-se demoradamente, compôs a parte final do estudado figurino com algumas gotas de perfume francês. Descobriu o pratinho com ameixas secas que trouxera há pouco, doces companheiras nos momentos de ansiedade. Com gestos repetidos e mecanizados pela prática, pôs-se a saborear o fruto, à espera de que o relógio avisasse o momento em que deveria se vestir e sair ao encontro do filho. Tinha quinze minutos, uma ameixa entre os lábios e sua canção predileta, Only You.
Começava a relaxar, quando cuspiu suavemente o caroço na palma da mão e depositou no canto do prato, para apanhar a segunda. E parou, horrorizada, a mão ainda no ar, em forma de pinça. Não acreditou no que viu. Estava imaginando coisas, com certeza. Deslizou a língua pelo interior da boca, meticulosamente, e sentiu o corpo inteiro amolecer. Suor brotou, pegajoso, na testa e em todos os poros, enquanto o quarto rodopiava e a canção era abafada por um gemido surdo que, num crescendo, transformou-se em grito. Pânico. Horror. Desmaiou mil vezes dentro de si, enquanto tomava consciência de que aquilo realmente estava acontecendo.
Ali, na sua frente, dentro do prato de ameixas, um dente. Seu. Repousava diante do par de olhos atônitos com toda a naturalidade. Abriu a boca num arremedo infrutífero de sorriso, só para confirmar. Ali, bem na frente, o buraco. Espaço vazio onde deveria estar aquele dente postiço. Quando foi implantado, havia já uns seis anos, não pareceu nada absurdo. Perdera o dente num acidente e, graças à tecnologia, logo estava com o sorriso perfeito e o fato esquecido.
Agora o dente estava no fundo do prato, a gota d’água que entornara o copo. Tudo o que ela tentava disfarçar sob as belas roupas e aparente tranqüilidade desmoronou quando o dente caiu. Descobriu-se frágil, desfigurada e velha, aos quarenta anos. Olhou novamente para o espelho e sentiu-se doente. Uma parte do seu corpo havia-se desprendido com tamanha facilidade que ficou com medo até de respirar. Sucumbiu.
Sentia que ia se desintegrar ali, diante do espelho e dela mesma. Agarrou um chumaço de cabelos e puxou, com força, certa de que ficaria com os fios todos entre os dedos trêmulos. Leprosa, onde quer que tocasse viraria pó.
Não perdoava ao marido ter deixado de amá-la, jamais esqueceria o dia em que ele foi embora com um “lamento” e um bater de porta. E todos os outros homens que tivera e nunca foram dela, tanta ilusão sobreposta que vinha à tona de uma só vez, golfadas de desespero despejadas sobre o vestido novo. E quando perdeu o primeiro filho, disseram que era forte e superaria a dor. Teve outro e era toda sorrisos, abençoada e fértil criatura.
Em todas as dores pareceu forte e equilibrada, enquanto se descabelava interiormente, fazendo o mundo acreditar que podia tudo. Diziam que nascera para suportar qualquer intempérie, ela, a criatura desdentada que chorava sozinha no quarto escuro, no dia do seu aniversário.
Sentiu-se feia, muito. A máscara de falsa felicidade se descolou, expondo uma mulher amargurada e insatisfeita. Todas as frustrações desenhadas em sulcos profundos onde antes a pele era lisa. Olhava para o rosto refletido no espelho – aquele sim, o verdadeiro – com insistência e asco. Riu. Chorou. E o choro se transformou em riso novamente e ela riu tanto que chegou a gargalhar, em meio às lágrimas. E começou a se achar bonita, e ria e rodopiava feito doida pelo apartamento.
Não houve festa naquela noite. Após duas horas de espera, o filho saiu à sua procura. Enquanto subia de elevador, sentiu pena da criatura horrível, velha, desdentada e louca, que gargalhava, pendurada num andar qualquer do edifício onde a mãe morava.