Partida

O ônibus pára num restaurante de beira de estrada. Todos descem com a morosidade nas faces, vapores em profusão soltam-se das chaleiras. Passo pelos balcões até a entrada oposta com outros ônibus embicados em oblíquo, cuja respiração nos interiores embaçava as vidraças. Na hora mais fria da madrugada, sento num banco de concreto e abraço as pernas apoiando o queixo sobre os joelhos. Do vazio negro a silhueta de galhos das árvores na minha frente ganha contorno com o céu em lenta mistura de matizes. Verifico os enormes incêndios ao horizonte, formando a extensa faixa vermelha que arde as margens da redoma celeste. A lua afoga-se na maré azul transbordante; ruidosa anunciação do dia pelos pássaros que acordam. Encontro-me em algum ponto do caminho onde novas terras insinuam-se nas ferrugens das placas e nos cupinzeiros que brotam dos morros; a tarde anterior já preconizava minha despedida com olhares órfãos pela janela do carro. Longe de casa, minha bagagem de bolsos ocos aguarda as sementes que colherei dos neologismos proferidos com sotaque de lavandeira. Do que levo, apenas os pulmões a serem eivados por sopros estrangeiros e a boca inflamada por temperos nativos.
Larvas cegas eclodem do ovo retorcendo-se no desamparo, banhadas em luz de estrela anã perdida na periferia da galáxia. Abdicarei do abrigo familiar para rodear as balizas totêmicas dos portais de outras cidades. Sacrifico-me à aridez e ao sal, presenteio meu destino com gota de sangue por entre as raízes que serpeiam as trilhas, enroscadas também na chapada altiva.
Volto ao balcão e ao café preto. A garçonete embala copos de vidro vazios na toalha para levá-los à pia. Buzinadas do ônibus obrigam o senhor de paletó hermeticamente abotoado engolir seu requeijão. Apressam a jovem mulher catar suas crianças soltas da sua mão livre do bebê dormindo que a outra, cheia, carregava. Parto com meu passo sonolento ao dia que amanhece e com a leve impressão de ouvir algum vagido de recém-nascido.