O mar é um elemento forte em minha vida. Eu nasci e cresci numa cidade litorânea e o mar é meu ícone. Posso passar meses sem pisar na areia, mas me alimento da certeza de que ela sempre estará lá para mim; da certeza de que vou, em algum momento, olhar toda a amálgama verdeazul de mar e céu sendo um só.
Vou à praia como quem vai à igreja. O mar é um de meus templos.
Costumo dizer que não tenho religião, tenho fé. Quando vou à praia penso sempre com deferência – em todos que amo, em todos que magoei, em todos que me feriram e peço a quem chamamos de Deus, e que eu sinto plural, que acolha-os num abraço morno, como a temperatura da água do mar da minha terra.
O abraço de Deus deve ser assim, morno e acolhedor como o ventre da mãe.
O cheiro de mar, o cheiro da saudade de mar, dormiu e acordou comigo. Veio no vácuo de um pensamento. Pensamento é bicho esquisito, anda de mãos dadas com outros, corre atrás e se intromete, gruda no outro e vem à reboque e às vezes toma a dianteira e se faz primeiro. E a gente se pergunta: por que mesmo que pensei nisso?
E então traz para frente o que ficou atrás.
O mar veio do pescador. Era em pescador que eu pensava. “Pescador de Ilusões”, título de um filme que vi há anos. Não pensava no filme (do qual nem lembro mais), mas no significado do título. Pensava no significado de ser pescador, no ofício de colher das águas, que é ofício de vida também. Pescador no mundo, que é tão grande e fértil, que é tão mar.
Creio que, de certo modo, algo que fazemos quando criança faz de nós o que seremos pela vida inteira. É de lá que os ensinamentos fluem para vida. Pode-se esquecer do rótulo e prosseguir fazendo o mesmo, sem saber, sem atinar para a origem do que se faz.
Eu olhava os pescadores quando podia. São elementos fortes na memória. Hoje há no meu ofício, na minha atividade, muito dessa postura de observação. Olho muito.
Na vida, eu penso, aqui e ali, uns e outros somos pescadores, uns mais, outros menos. Mas me dou conta de que para ser pescador tem que se conhecer, amar, respeitar …; e até temer – o mar. Seja que mar for.
O pescador veio com o Miguel. Eu lendo a sua crônica, ele falando de um outro título. “O coração é um caçador solitário.” Ele dizendo que “nossos corações urbanos são caçadores solitários nas selvas de concreto, nas telas brilhantes dos computadores, no grande mistério que é o momento seguinte.” E eu não sei porque, mas só me veio à mente a imagem de pescador. Talvez porque ele seja pescador. Pensei nele pescando (será que ele pescou quando criança? Não sei. Vou perguntar…) no sentido mais amplo, de quem que está sempre extraindo da vida para fomentar a vida e dividindo isso com os demais…
É isso. Miguel pode ser visto como um pescador. Não de ilusões, mas de emoções. Pesca da vida emoções e, com a sabedoria de um pescador dedicado e devoto, compartilha com sua aldeia. Com todos os que, como ele, lançam suas iscas ao mundo em busca do que ele guarda em si e nem sempre são bem sucedidos.
A missão dele nesse sentido, acredito eu, é a de alimentar, de fornecer alimento vital à alma de muitos.
O Miguel trouxe a crônica. Ela nasceu com barulho de saudade do mar, cresceu e se mostrou na imagem do pescador e finda nessa consciência boa, leve, de que somos, muitos de nós, pescadores, de ilusões, alguns; de emoções, outros poucos. De tarrafa ou de caniço, no mar do mundo ou num rio de um quintal da nossa aldeia.
Não importa quão o somos, nem se de vez em quando escolhemos a isca errada, nem se não somos muito habilidosos nessa arte.
A vida …; como o mar, eu percebo, é perfeita. Produz gente como Miguel. Pescadores exímios e generosos mesmo que não saibam que o são. Não muitos, mas produz. Para sorte nossa. Porque quando sozinhos não conseguimos pescar nada, é possível, através deles, ter alimento e matar a fome de emoção.