De Pessoa pra pessoa

Abri uma página de mim mesma. O sol iluminava o falso inverno e os obscuros segredos apareciam pontilhados, expressando um não dizer: situações, sentimentos inimagináveis, des-traçados e destroçados dos fados da minha existência. Descontínuos sentimentos surtados, ponta de dor, lança inerte de prazer, vontades vãs: pessoas, sons, ruídos dos carros contrastam com o silêncio do arvoredo da praça. O vento balança o choro das árvores, arrancando dos recônditos as ruínas sociais … Enfim, um sorriso iluminado chegando para me apaziguar… Tudo ficou sereno-tenso – não se pode conter os prazeres dos sentimentos, nem o fado do anjo mau. Em meio ao turbilhão deslizo/deslizas minha/tua mão suavemente pela maciez de mim mesma, a outra metade. Sinto-me, narrando-me: o que deveria ser lírico transforma-se em épico. O meu ser desesperadamente me avisa que sou outros seres em situações diversas e adversas da minha vontade e, ao mesmo tempo, a minha vontade é sugada pelos outros seres que habitam em mim, mesmo sendo corpo e não corpórea dos espaços infinitos… Minha narração pára no ar, buscando o épico da grandeza do segredo. Na brisa do movimento, nas mãos suaves que deslizam, uma outra voz cansada pelas ruínas do tempo pede passagem, ensinando-me pelo outro e assume a nau da Mensagem: é Fernando Pessoa decifrando os seres, no místico dos brasões do mar português no encoberto. Na tripartição da Mensagem, as outras mensagens… E em sussurros, como um vento que sopra os sons longínqüos, ouço o mar, trazendo de longe, na ressaca das ondas, a pessoa essencializada do Pessoa, a quem dou voz no meu sentir:
– Tudo que sinto ou minto… tento dizer a verdade poética. Sou poeta angustiado, compreendo o desespero do outro. Sendo assim, não sou eu mesmo, sou o outro. E sendo o outro, não deixo de ser quem sou. O meu ser é os outros seres que habitam em mim, seres estes capazes de tirar dos outros seres o seu próprio ser. Na minha origem, trago a saudade da minha terra, mesmo estando nela. Por isso a envolvi em mistérios compreensíveis somente para os que sentem com a alma, pois a minha pátria está encoberta por um véu lírico, só embaixo do véu é possível ver o épico. Não sou como o nosso amigo Camões que se enfeitiçou pela grandiloqüência épica, para disfarçar o sofrimento das tristezas e perdas da sua origem, lançando outra vez as caravelas ao mar. O meu mar é porto sereno de saudosismo melancólico, não tem mundo terreno e mundo mítico, tudo é um só, porque falo com a voz do poeta, com a dimensão da alma. Esta é a mensagem da minha Mensagem…
Ouvi o barulho da água do meu mar levando nas ondas a pessoa do Pessoa… Era só o chuveiro cotidiano, sinalizando a minha volta….. Experimentei uma nova nau e transformei esse êxtase em educação das sensações do Pessoa-heterônimos-Mensagem, apresentando também a grande pessoa-lusa de Camões. E pelas sensações fluiu expressão corporal, criatividade, pesquisa, declamação, estilos e tudo foi encenado, virou teatro: “Do mar de Camões ao mar de Pessoa”. Na minha pessoa, só assim foi possível…
Ah! Antes de partir, Pessoa sussurrou-me fragmentos de versos, as ruínas do tempo, tentando nos definir: nós, esses seres complexos e indecifráveis, não somos para compreender, mas sim para sentir….
“Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.” (Álvaro de Campos)
“Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.” ( Álvaro de Campos)
“NÃO SEI se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás, Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro. Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?” ( Ricardo Reis)
“Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.” (Alberto Caeiro)
“Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.” (Fernando Pessoa)