Quase quarenta anos depois, faço a pé o mesmo trajeto na cidade grande. Na esquina, o edifício onde eu morava. O prédio já era velho naquele tempo, agora está um caco. Cinzento, lúgubre, a sujeira de anos e anos acumulada na sua fachada feia. Imaginava-o implodido para ceder lugar a um prédio novo, uma dessas torres de concreto, aço e vidro fumê. Ou, no mínimo, que se encontrasse interditado a bem da segurança pública. Mas ali está ele, não tão firme, e bem mais acabado. Enfio a cara no diminuto e sombrio hall de entrada, curioso para ver se o elevador de porta de treliça, que mais parecia uma gaiola, ainda existe. Não. Foi substituído, talvez a mando da vigilância sanitária. Aquilo era um perigo permanente; rangia, guinchava, chiava, dava trancos medonhos, na iminência de despencar a cada subida. Durante muito tempo aquela geringonça ameaçadora povoou meus pesadelos mais aterradores. Com um olhar, inspeciono o prédio de alto a baixo. Tudo na mesma, nas varandinhas as cuecas ao vento, agitadas feito bandeiras. Na Aurora, a extinta gravadora Chantecler é agora um estacionamento. O boteco da esquina continua igualzinho. Ponto dos cantores que ali ficavam aguardando o ansiado e jamais vindo sucesso. Alguns, raros, se deram bem: Marta Mendonça, Giane, Nerino Silva – uns dos escassos sambistas paulistanos; Francisco Egídio, careca lustrosa, vozeirão! Waldick Soriano, que cantava boleros, antes de estourar com “Eu não sou cachorro, não”. A grande maioria, no entanto, jamais foi conhecida além da Aurora e adjacências; e ficava ali, bebericando cachaça com limão e degustando suspeitos croquetes e coxinhas.
Como resistem os botecos! Provavelmente mil donos já passaram por este, mas ele está lá, impávido, sujo, emanando seu bafor quente e gordurento rua afora, como sempre. Na Arouche, outro boteco indestrutível, o do Português, onde eu tomava o meu magro café da manhã e comprava cotidiano meu Mistura Fina sem filtro, o máximo que a curta verba então permitia. Bem merecia um estudo mais aprofundado essa incompreensível teimosia dos botecos. Sei lá como, superam tudo: crises, pacotes econômicos, revoluções e até fenômenos atmosféricos. As empresas, em vez de gastar inutilmente com esses cursinhos de “neurolingüiça”, deveriam é tomar com eles lições de sobrevivência.
Atravesso a rua, demandando a República. Antes, inda vejo que no lugar da loja calista Dr. Scholl, agora é Tecnopé. Nem isso mudou. Nunca imaginei ser “Dr. Scholl” uma marca, a mim parecia tratar-se de um alemãozão de barba vermelha e avental branco, que, rindo maquiavelicamente, arrancava com um alicatão destamanho as unhas dos incautos clientes.
Prossigo na minha caminhada. É sexta feira, inda oito da manhã, o movimento nas ruas mal começado, gente indo e vindo apressada. Dia emburrado, céu feio, ventinho frio incomodando. Há quase quatro meses não chove a sério na cidade. A fina poeira preta misturada ao ar seco arranha as narinas e a garganta. Ardem os olhos. Atravesso a República pelo lado mais baixo. A Timbiras e a Pedro Américo permanecem curtíssimas. Não me lembrei de ver se o Cine República ainda existe, provavelmente não mais.
Cruzo a Ipiranga e nada acontece no meu coração.
Invado a Barão de Itapetininga, agora calçadão, e dou de cara com uma espécie de exposição estática de velhos – a multidão deles, momentaneamente imóveis, como se numa daquelas paradas que os desfiles fazem para recuperação de fôlego. Imagino que possam estar numa passeata, mas os velhos estão parados, ostentando suas chamativas placas de “compro ouro”, “currículos na hora” – barato! R$0,90 cada, com direito a cinco originais e um envelope – não sei por que não dão logo os cinco envelopes! Os velhos calados, que não sorriem, o surrealismo da cena é de um Kurosawa, ou devia ser. Envergam uma espécie de poncho de plástico de cores vivas, azul, verde ou vermelho, com a propaganda escandalosa, e empunham aquelas placas como estandartes. Os homens-sanduíche. Quixotes paralisados, com seus adereços de mão, plantados em pleno cimento central da cidade. Sinto uma certa pena, ou raiva. Imagine um homem de sessenta e tantos anos tendo de se submeter àquilo por míseros dez reais e um trocado para um reles pê-efe. Imagine um neto olhando para seu avô ensanduichado daquela maneira ridícula. Um avô merece respeito, um avô tem de usar chapéu, um casaco quente, fumar cachimbo cheiroso, ter a autoridade que os anos lhe conferem. Um avô tem de ser um contador de histórias. A ninguém deveria ser dado o direito de tirar assim a dignidade de um avô. Mas, com aquele traje grotesco, não dá para se ter nem o próprio respeito. Aposentados que ficam ali imobilizados o dia todo, as pernas doendo, a placa os ajuda a se manter em pé, fincados no chão. Visivelmente cansados, encurvados pelo peso da idade. Bagaços humanos brancos, carecas, murchos, magros, gordos arfantes, baixinhos encolhidos por uma certa vergonha, negros de carapinha esbranquiçada, gastos, antigos óculos, os movimentos lentos de animal moribundo. Tudo que é tipo de velho. De comum entre eles, o característico olhar fosco da desesperança e da necessidade.
Do comércio antigo, apenas a obstinada Casa Manon subsiste. O resto são lojas de tênis e largas roupas para esqueitistas. Tudo material de segunda, em parcelas a perder de vista. Afasto-me, me enfio por uma rua nova, a Nova Barão, que liga a Barão de Itapetininga à 7 de Abril, que agora alcanço, e desemboco na Dom José Gaspar, a praça. Escapo pela avenida dos viajantes, a São Luís, e encerro melancolicamente meu giro num café, olhando para a subida da Consolação, perene obstáculo à resistência e às pretensões de vitória dos maratonistas silvestreanos. É o trecho em que se decide a corrida. A inabalável e íngreme Consolação, que separa os sonhadores dos realistas.
São Paulo, tirante a Barão juncada de velhos, continua a mesma de quarenta anos atrás. Agrava que não há mais garoa e nem bonde. Agora é poluição, inversão térmica e enchente de vez em quando, e metrô. E me ocorre subitamente que hoje os cinemas não têm mais cortinas.
O mais, fui eu que mudei…