1.
Era domingo e ela acordou enrodilhada em torno de si mesma, ouvindo de novo seu próprio coração sozinho, assim no escuro, sem pensar em nada que não fosse receber bem as visitas que viriam para o almoço, que toalha usar, os talheres de prata ficariam bons para aquela ocasião, brilhantes, muito mais leves do que os outros, filetados numa espécie de ouro. Quais pratos? Talvez os verde-água, quem sabe estariam bem com um arranjo de flores no centro da mesa, os guardanapos de um verde esmaecido, quase engomados, de linho; a toalha de um verde forte, quase-bandeira?
2.
Flutuou sobre um verde gramado que era a mesa posta, quase que sonhando, acordando aos poucos, espreguiçando-se, um certo prazer há muito esquecido, os olhos fechados, um dia inteiro pela frente.
Havia um livro que gostaria de folhear à tarde, as pernas encolhidas sobre o sofá da sala de tevê, a casa livre já dos convidados, ela abriria o livro e leria a história ali contida: aquilo era prazer demasiado, programação simples para um dia sem trabalho e sem mais nada que a aborrecesse.
Somente quando levou a xícara de café à boca, o jornal aberto, é que se deu conta que não pensara nele naquela manhã, não o incluíra em sua vida de domingo, não encontrara em si traço nenhum de saudade, tudo tão esquisito dentro dela, nem coração havia mais, nem nada.
Lembrava-se agora, vestida ainda com uma camisola vinho, o quanto ele tinha sido importante para ela no último ano e percebeu um sentimento estranho tomando forma dentro dela, juntando-se ao amargo da boca: certo desprezo, o mesmo talvez que uma mulher sente quando abre uma lata de ervilhas, corta uma cebola em rodelas, vê alguém cuspindo no chão…
Certo desprezo, o mesmo com que ele por que nunca notara e só agora o fizera? sempre a tratara…
3.
Em frente ao espelho, viu-se num relance: quem era, afinal, aquela mulher de rosto sério, mas de olhos melancólicos, vestida com uma camisola de seda às quase-dez da manhã?
Teve a consciência exata de que um dia quem saberia quando? iria morrer. Ele não sabia, por isso era feliz, dessa felicidade pequena e oca, felicidade comum, medida à colher, comprada a prestação, gotas contadas, uma a uma, remédio de que nem sabia o amargor.
Antes disso, morrer, pretendia plantar um jardim nos pequenos espaços que sobraram na casa, jardineiras cheias de plantas, vasos bem cuidados… Arrancaria tudo o que estivesse plantado, começaria tudo outra vez, mexeria a terra como se estivesse revolvendo seu próprio ventre, deixaria nascer sementes. Explodiriam flores brutais, de um vermelho escuro, folhas densas, vertendo um sangue quase humano. Pensou que, talvez, a próxima Primavera a surpreendesse: que bobagem! E fez um gesto assim, dela mesma, a mão passando rente ao nariz, um ar de desprezo.
Olhou-se de novo no espelho: era desprezara nela o que julgara mais sagrado, o que ela guardara como o mais precioso dos tesouros, só para ele…
Virou-se lentamente para o vaso sanitário, ainda viu um resto de doçura no olhar refletido no espelho, que sabia estar indo embora, se despedindo dela; meu Deus, pensou solenemente, como as coisas são de raspão, os cegos, os mudos, os surdos… Até que, inesperadamente, vomitou o resto de amor de que era dona, seu próprio amor, não o dele que era tão pouco e só agora percebera, ainda bem.
Até que esvaziou-se inteiramente do que ele mais desprezara nela, até que descobriu que já não podia mais, finalmente, chorar de tanta dor… Até que,voltando a se olhar no espelho, viu seu próprio e verdadeiro rosto: uma mulher de meia idade e um esgar de nojo, os olhos cheios de lágrimas pelo esforço, a língua seca, os cabelos brancos que apareciam, as primeiras rugas, a brutalidade infeliz de existir no meio dos boçais, preço vil pago secretamente porque nada, nada na vida pagaria o preço de ter sido secretamente feliz um dia.
Mas esperara demais do amor.
Não, começou a rir meio demente, não… esperara demais de si mesma. E apenas soluçou.
4.
Quando as visitas chegaram, estava outra vez composta. A cunhada, de cabelos tingidos de um louro quase palha, medíocre como os rinocerontes, reconhecera nela: O que há com você, Ana?
Respondeu um nada esquisito, quase sem música, que ficou por uns instantes vibrando no ar e , usando o seu melhor sorriso, pediu que a empregada servisse o almoço. Os pratos rebrilhavam , ainda sem uso, quando ela olhou com seu olhar perdido a mesa posta e anunciou:
-Estou de volta.
Todos riram sem entender.
É que ela tinha saído um pouco, explicara. Mas agora, disse sorrindo, agora volto a cuidar eu mesma da mesa, das toalhas, dos talheres e dos pratos. Porém o olho , de repente, alcançava no meio da mesa a faca de ponta fina e seu brilho abissal. E o coração, infeliz e zonzo, sonhava com o vazio do peito, o vazio do amor quando vai embora, o vazio de quem arrancara, aos poucos, a sangue frio, um tumor estranho de dentro de si mesma.
E o almoço de domingo, finalmente, começou.