Primeiro…

Há coisas que acontecem no mundo milhões de vezes por dia, já foram por demais decantadas e que, no entanto, quando é à gente que acontecem, têm um delicioso sabor de ineditismo, uma forte carga de emoções, ansiedades, incertezas, alegrias e tristezas e deixam, certamente, uma saudade imensa. Primeiro amor é assim: cada um de nós tem a lembrança mais forte e mais marcante, embora sejam quase todas muito parecidas, pois não é que nós, queiramos ou não, somos mesmo é muito parecidos? Mesmo assim, como tantos outros já o fizeram – certamente com muito mais brilho – não resisto à tentação e vou tocar no assunto. No meu caso, é claro, foi tudo muito lindo e diferente!…
Já faz muito tempo, preciso voltar a meus quinze anos. Para ambientar a história, existe uma música marcante: uma canção de nome “Only You”, cantada pelos “The Platters”, um conjunto vocal americano muito famoso na época. A gente só entendia o título – nosso fraco inglês colegial não captava o resto da letra. A melodia era, no entanto, linda e apaixonada, ainda mais quando marcada pela musicalidade e interpretação dos “The Platters”! Muitos anos mais tarde, distraidamente assistindo a uma aula de inglês em um telecurso da TV Cultura, vi o texto da canção mostrado letra por letra na tela. Foi um imenso prazer entender seu sentido:
Only you can make this world seem right, Only you can make the darkness bright…
Passei a gostar ainda mais dela, pela forma simples, delicada e inocente de expressar uma paixão. É lindo! E minhas lembranças da época ficaram muito mais belas!
“Only You”, recém lançada, tocava então nas festas populares produzidas pela paróquia local, que duravam cerca de um mês e aconteciam em quatro ou cinco noites por semana. Toda a meninada do bairro ia lá, havia barraquinhas de tiro ao alvo, roletas caseiras, pesca, um restaurante. Ah, e também um sistema de som que passava mensagens de amor que os tímidos rapazes e moças de então não ousavam transmitir pessoalmente.
Nestas festas, e ao som de “Only You”, foi que conheci Maria José, uma morena linda de traços fortes que morava na rua de trás e que, juntamente com suas duas irmãs, era motivo da grande maioria dos suspiros dos garotos do bairro. Em uma certa noite, passeando casualmente com um amigo por entre as barraquinhas, senti o corpo gelar e a alma arder quando meu olhar cruzou um pouco mais demoradamente com o de Maria José. Era uma linda passagem da minha vida, então… Eu tinha uma outra paixão – coisa de mineiro – por aviões, adorava construir e fazer voar aeromodelos. Exatamente naquela época o Carlos, meu irmão mais velho, tinha voltado de uma viagem à América e trouxe de lá o que era então a fina flor dos motores para aeromodelos, excelente para vôos de acrobacia com modelos controlados por fios de aço – naquele tempo o controle remoto mal engatinhava. Com aquele motor construí e fiz voar os mais imponentes aeromodelos da minha vida! Portanto, estava com o ego em alta quando iniciei o inesperado flerte com a Maria José, a garota mais cobiçada do bairro, imaginem! Logo eu, que não tinha aparência e nem pretensões de galã! Ao mesmo tempo era um desafio mergulhar naquele sonho apenas insinuado mas intensamente desejado. Durante noites a fio abracei, beijei e fiz juras de amor eterno à Maria José-travesseiro, sonhei e ansiei como nunca dantes!
Mas havia a fortíssima barreira da minha própria timidez. Mal consegui passar dos olhares trocados em encontros deliberadamente casuais por entre as barracas da festa paroquial. Maria José era, ao mesmo tempo, a possível encarnação dos meus mais apaixonados sonhos de amor (“my dream come true” , como na letra da música), e o mais terrível algoz que jamais havia encontrado. Sua arma mortal seria um simples sorriso de indiferença ou mesmo de escárnio…
O tempo passou rápido, muitas outras paixões vieram e se foram, trazendo toda sorte de alegrias e sofrimentos – o que, na realidade, deixa mesmo é uma fortíssima sensação de ter estado bem vivo ao longo de todo este tempo. Ficou uma lembrança indelével, tocante, que persistirá enquanto estiver vivo, daquele momento mágico da vida. Hoje, quando ouço “Only You”, lembro-me vivamente da Maria José e sua beleza, daqueles longos olhares trocados, e sinto saudades, muitas saudades! Algo mais, no entanto, perpassa-me a alma neste mesmo instante e não consigo reprimir um nó na garganta, um arremedo de soluço e um suspiro prolongado (perdoem-me os românticos radicais, eu era então um adolescente, mistura heterogênea de criança e adulto):
Ai, saudade… – meu primeiro MOTOR!…