Aos meus amigos do Letras e Cia
(porque sim)
Pegue uma linda e alvoroçada manhã de janeiro; do fundo do coração, ah lugar comum entre os comuns, diga pra você mesmo que merece esta manhã que existe entre o verde e o azul, esbranquiçada em nuvens, sobrevoada de pássaros, ameaçada por uma boa e passageira chuva de verão, catabrrruuummmm!!!
Arranque os sapatos, as calças, a camisa e a gravata e coma pão no café da manhã; coma olhando para os que se sentam com você ( seja quem for, mas não se sente nunca ao redor de uma mesa com quem não ame, é pecado mortal) ;ofereça ao outro o direito de servir-se em primeiro lugar.
Aproveite e tome café, aquela xícara grande de bom café, falando meio que com a boca cheia, de preferência querendo rir e chorar, tudo junto, falando alto, querendo a vida, atrapalhado do jeito que são atrapalhadas as criaturas humanas, mas humano,é o que importa e depois, brinque com as crianças, rodando no ar seus sobrinhos, vizinhos, filhos ou netos.
Enfie as mãos nos bolsos e assovie. Melhor que não haja mesmo bolsos… mas assovie alto, assim mesmo, forte, vê lá dentro aquela felicidadezinha que vai brotando, vem assim como se nem viesse e acaba ficando? Pois é… Guarde-a para você, divida-a com os outros.
Ande e assovie. Sugiro a Sinfonia 40, do Mozart ou A Primavera do Vivaldi. Vá andando descalço por um caminho de terra ou coberto por pequenos seixos rolados, sem lenço e sem documento, sem rumo nem direção, assim, ao sabor do vento. Livre para ser sem ter que dar satisfação.
E, depois, sob a árvore da infância ( imaginada ou real árvore), declame o poema do anjo que sua mãe ensinou: “Meu anjo da guarda, fiel protetor, segure a minha mão, proteja minha alma, faça com que eu seja bom, dê-me amor e calma.”
Repita. As mais lindas orações são as que aprendemos na infância , quando ainda acreditávamos em coelhinho da Páscoa.
Depois feche os olhos e pense nos beija-flores ( esqueça o plural de guarda-noturno, guarda-roupa e mula-sem-cabeça!), nas violetas azuis, nas orquídeas que nascem sob as grandes árvores, no bem-te-vi que grita assim: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi… Também eu um dia bem que te vi.
Invente uma bicicleta e tenha sempre a certeza de que um amigo, uma amiga, um amor possa olhar seu joelho ralado depois do tombo e dizer: deixa que eu passo mertiolato e assopro o machucado pra você. Se ouvir isso de alguém, jamais estará sozinho.
Reinvente aquele momento em que você, aos doze anos, viu o mágico, a mágica, a magia; e , depois, de olhos fechados e rodopiando no meio do nada, lembre-se daquele instante em que sua mãe gritou, feliz demais, no meio da sala, trêmula: Ele leu, ele leu, ele leu, meu deus do céu! E você leu, ainda que atropelando as palavras, feito um gago, feito um homem tão distante de um elefante que, apesar da magnífica memória, o elefante, claro, jamais aprenderá a ler…
Lembre-se da sua fome aplacada diante do prato de cada dia; da esperança que dá cambalhotas aí dentro do seu peito maluco; da emoção guardada quando você adulto ou criança, viu pela primeira vez o mar: olha o mar…ah, um navio sobre o mar… Mas como o mundo é uma grande caixa de Pandora,leve em conta também as perdas, as pessoas que se foram, os planos por água-abaixo, o amor que foi negado, o amor que foi consentido, a primeira vez que você fez amor. E, caixa de Pandora que temos, todos fazemos jus à felicidade.
Acrescente o susto terrível do primeiro ovo quebrado, o vôo indecente e desajeitado do peru e seu glu-glu, o macaco mostrando o pinto no zoológico, os patos nadando na lagoa, a primeira vez que você bebeu caipirinha; a primeira vez que dirigiu, ah liberdade, seu nome sou eu! A primeira vez que foi espiar suas primas tomando banho…
A primeira calça jeans, a escolha do primeiro sapato, o recebimento do primeiro salário, a primeira carta que recebeu, a emoção do primeiro e-mail, a primeira cobrança e a primeira vez que você viu o Chacrinha balançando a pança, nem que seja na música Aquele Abraço. O susto na praia: cadê minha mãe, meu pai e meus irmãos? A cesta de piquenique – formigas!!! – a cesta do basquete, a raia, a arraia, a arara, a aranha, a sanha, a fúria, o murro, o amor no escuro, o urro, o orgasmo primeiro, entre o pecado e o amor. E a picada de abelha no dedo, e a televisão que saiu do ar em 1977, justo quando o seu time foi campeão.
O beijo, o uniforme, o paletó, o baile, o pneu, o professor ateu: quem sou eu, quem sou eu? Ah, mãe do céu, fiquei sabendo que o fulano deu…
A lagarta listrada, a gosma, o vômito, aprender o que é barômetro, metrônomo, isômero, isósceles, escaleno, equilátero, ácído. O pagamento, as contas, o salário. A cama, o descanso e o salafrário. O salafrário também conta, ele é necessário para que, livres dele, possamos ver o mundo, os seres e as coisas com maior precisão; cessada a miopia, dê boas-vindas à vida, à vida, à vida…
E o beijo no metrô, lembrar do beijo no metrô.
O coração saindo pela boca, ah o amor é mesmo uma coisa louca. mas já é meia-noite e meia, meu amor?
Dormir, anjos da guarda.
Amar, tanta coisa pra dizer, mas tô cansada, nos falamos amanhã. Amanhã, amanhã…
O banho, o carro, o ônibus, a rodovia, a via, a tia, um outro dia, meu amor.
O amor.
E a oração ao anjo da guarda protetor. Um homem que ama acredita em anjos da guarda ou não? E ainda por cima faz a oração…
O lápis, a caneta, o papel, o teclado. O texto, vida.
Não, não se escreveu errado… Caçamba é mesmo com cê acedilhado…
Um traço de giz na lousa e a borboleta da palavra pousa, e tal e coisa. Assim, assim, assim…
Um gato, um filho que se espera , um prato, e um lindo botão do mais cheiroso jasmim.
Fim!