Reza

O velho Domingo Baiano, seguido por umas tantas velhas de lenço na cabeça, entoa a reza compenetrado. É o rezador oficial da capelinha do Serrote. Além de curador, benzedor, garrafeiro de respeito e caprichoso seleiro. Preto que nem um tição e malhado de vitiligo. As manchas rosadas invadem sua cara preta, pegando parte da sobrancelha e uma asa do nariz largo. Pampo, mas ninguém ouse brincar com isso. A carapinha já dando de embranquecer impõe respeito e autoridade. Duma vez ele me curou de uma suposta picada de cobra. Suposta porque acabou não sendo cobra. Que cobra nem era mesmo. Era bicho-gatinho. Mas o susto, esse, foi sim de cobra. Usou lá uma mistura de oração poderosa, alho-grande, caldo de fumo e querosene. Foi passar no braço mordido e sarar quase que de repente.
Domingo prossegue na sua ladainha. Agora está na Salve Rainha, que é sua reza de mais peso. Eu fico ajoelhado ao lado dele porque sou, por assim dizer, o dono da reza. Foi promessa feita por meu pai de uma vez que tive um sarampo meio temporão, brabo. Fiquei ruim, quase que eu fui dessa vez. Se escapei foi só por causa da promessa. Isso faz muito tempo.
A promessa era pra eu ser coroinha. E eu, de pronto, me neguei a cumpri-la. Coroinha, nem a pau! Aquele raspadinho bem no redemunho da cabeça, saia preta! Quem ia agüentar a gozação era eu! E, afinal, não fui eu que fiz a promessa. Meu pai embatucou. Promessa é coisa séria, o descumprimento dá em castigo. A dívida era dele, então. E foi ser sacristão por um ano pra pagar a promessa. O santo que se contentasse com isso. Mas, inda assim me fez assumir que faria pelo menos uma reza. Tudo por minha conta, mesmo que demorasse para eu ter dinheiro meu para arcar com as despesas. Fechado. A reza eu faço.
E hoje pago a promessa com estilo. Comprei muito rojão, sacos de biscoitos, pão de montão, e café – que está sendo coado inda agorinha. O cheiro domina a capela e estimula o preto Domingo a acabar logo com a reza. Ele apressa a cantilena e principia um Credo proferido com o devido fervor e respeito. É a derradeira oração. Escorrega entre os dedos judiados as últimas contas do rosário. A velharia desdentada o persegue contrita. E encerra num amém bradado em conjunto. Os homens põem os chapéus e as mulheres livram a cabeça dos lenços.
Anoitece. E agora é que a festa começa: estralam os rojões, a cadelada presa late frenética, viola e sanfona acordam. O arrasta-pé principia remexendo a poeira do terreiro. Há um leilão de prendas em meio ao alarido. O leiloeiro Zé da Gracinda, que de profissão é carcereiro, sobrepõe seu vozeirão. Levanta a primeira prenda e me procura com o olho. Por dever de dono da festa tenho de arrematá-la. Uma breve disputa com um primo que só replica para elevar o preço. Mas, num gesto de desprendimento – que espero não seja tomado como ostentação – encurto a briga e mando logo uma exorbitância. E arremato, numa cesta, uma galinha carijó com uns tantos pintinhos. Devolvo-a para ser leiloada de novo. Minha obrigação está feita.
Procuro Domingo no meio da festa e lhe dou duas garrafas da boa e um trocado pro santo de sua devoção – São Benedito. Domingo preto não cobra por reza, benzedura, ou o que seja. Mas sei que o dinheiro é bem-vindo, que o santo também tem lá suas necessidades terrenas. Afasto-me pro escuro e fico ouvindo o nheco-nheco da sanfona de Zé Santana brigando com a viola desafinada. As vozes guinchadas dos cantadores, uma grossa outra fina. Meu pai chega mais pra perto e me diz satisfeito:
– Acho que a promessa tá bem paga.