O dia está ensolarado na avenida Rebouças , localizada na cidade de São Paulo. Ao redor da velha ponte verde, onde as pessoas se cruzam e suas mentes- com pensamentos recônditos- queimam sob o sol do meio dia, está o centro comercial Eldorado. Durante toda a jornada se observa a freqüência quase alucinatória, com que as pessoas, entram e saem do estabelecimento. A efemeridade exterior não é, de certa forma, compatível ao perscrutar interior de cada uma daquelas almas errantes; todas as figuras na vacância se encontram com diversos teatros internos. Concernentes ao diabo e malignamente intrincados, os teatros mentais raramente escapam à deserção; abandonadas as boas impressões das agradáveis experiências , sobram ali, no coração de cada ser, os sofrimentos mais cavados.
Alguns relógios na avenida geram ritmos. Acompanhando o ritmo numérico das horas está a temperatura, também disponível à consulta, por parte de qualquer pessoa. Os trinta e quatro graus estão sendo representados não por números; mas sim, pelo suor incessante de cada uma das pessoas, pelo esforço digno de uma faina terrestre , pelos raios de sol que incidem de modo apoquentador nos cidadãos. Ao corpo de cada um, nada mais do que um coração de metal. A fim de realizar as inúmeras tarefas do cotidiano sob as malignas influências externas, deve-se pelo menos, abafar o teatro interno; trazer o calor de fora para dentro. Sufocar as emoções restantes e mecanizar o coração; formar uma barreira e um suporte de vida. Todos nós agradecemos ao coração de metal.
A todas as pessoas que necessitam do coração de metal, é dada uma certa devoção. O órgão de metal devota todos os seus esforços a fim de escorar cada momento arquejante das débeis figuras sob o sol; porém, como toda a máquina feita pelas mãos humanas, o coração de metal não é infalível. A estrutura do órgão metálico depende da vida biológica e emocional de cada um; com a química cerebral natural e herdada ,por cada pessoa, o maquinário estabelece uma relação intrínseca.
Saindo do centro comercial, através da porta com as faces viradas à Rebouças, o ser humano a quem chamam de Caio, vaga pela quente calçada da grande avenida. Um terno preto e um registro geral mostrando a descendência alemã e o nascimento no dia 07/02/1982, caracterizam o ser como cidadão; destacada de tudo está a pessoa. Um político jovem, sempre apressado , e carregando o seu nome às decisões importantes, a figura de Caio representa um andarilho sob as farpas sociais, e ao mesmo tempo, encena uma perturbação azeda e insuportável; tudo isso é percebido através da expressão do rosto e do andar quase alucinado.
Indo em direção à avenida Faria Lima, de súbito, Caio tem a sensação de estar sendo seguido. Se vira diversas vezes a fim de visualizar tudo o que ele deixou para trás; nada é encontrado. Os passos perturbados seguem seu rumo ajudados pelo coração de metal, e, se desviando desta feita, a mente não parece suportar tal ritmo de funcionamento, fazendo com que o corpo mais uma vez atalhe as ambições progressivas e retorne aos medos regressivos. Alguma forma escura destaca-se da multidão , alguma forma sem contornos, a qual, depois de alguns segundos , não se mostra mais uma forma, e sim, algo deforme.
A figura sinistra parece ocupar todos os lugares da avenida e, ao mesmo tempo , parece acompanhar qualquer velocidade que por Caio seja alcançada. O pânico e o medo se fundem e a figura de Caio parece, uma das primeiras vezes, tomar forma única; a fuga lhe é possível pela sua boa constituição corporal. Após dobrar a esquina da avenida Rebouças com Faria Lima, Caio entra em mais um tapete urbano contemplado por milhões de brasileiros; não está só, mas no entanto, está só. Começa a se assustar quando percebe que as pessoas ao seu redor não vislumbram a tal figura, talvez ele esteja enlouquecido, ou então, talvez esteja cansado após uma semana de trabalho tão penosa, talvez. No lugar das certezas e convicções se colocam as mais diversas dúvidas, que de certo, escaparam da averiguação feita pelo coração de metal.
Alguns metros percorridos a passos rápidos e largos,e o fôlego começa a trair seu corpo. Pouco espaço atrás dele, a figura se aproxima em grande velocidade de sua pessoa; tensão, tormento e segundos após a aflição, alívio. Sensação de refúgio ao visualizar aquela assustadora criatura, que no momento é um alienígena para Caio, adentrar uma pequena loja de lembrancinhas. Apoiando-se na estrutura de uma banca de jornal, ele observa resolutamente a porta da loja, esperando pois, a saída da criatura e a confirmação, de que não se trata de um alienígena e sim , de uma pessoa normal indo tranqüilamente fazer as suas compras. Engano. Sob o sol se apresenta às vistas do pobre homem um vulto negro , de cabelos compridos, e sacola em riste; mas ao se aproximar de Caio, a temerosa figura deixa cair a sua sacola , da qual, escapam alguns bichinhos de pelúcia: um cachorro dálmata e um cachorro pluto. Dominada pelo ódio, a criatura recolhe a sacola e os seus pertences, e se põe a perseguir , agora com mais raiva e decisão, a pessoa de Caio.
Já perto do centro comercial Iguatemi Caio corre desesperadamente a fim de alcançar a festiva estrutura no pós-natal. Como carrega uma pasta pesada, ele não consegue correr o quanto gostaria. No entanto, mesmo assim, consegue chegar ao centro comercial antes da criatura sinistra. Com o suor dominando a face , e a indisposição ocupando todo o seu corpo, ele senta num pequeno banco em frente à loja de brinquedos, tampa o rosto com as mãos e se põe a chorar desesperadamente; o temor, o calor, o suor, o choro; nada chama a atenção dos freqüentadores do centro comercial para ele: Caio está mais sozinho do que nunca. As pessoas e os lugares parecem girar à sua volta , e quando o terror se mistura com uma imensa vontade de vomitar, ele cruza as mãos atrás da nuca, cerra os olhos de modo violento e faz uma força incomensurável para reatar o despedaçado coração de metal; mas é tarde.
Quando percebe entre as pessoas , o vulto da criatura , ele corre em direção à lanchonete e, nela adentrando como um furacão , Caio se dirige ao banheiro; inclinando a cabeça sobre a privada, o vômito banha toda a cabine do sanitário. Vítima dos tremores incessantes , ele apanha todo o papel disponível e limpa o rosto, já banhado no momento, pela água da torneira. O pluto e o dálmata lhe vêm a mente, quando ele, de mansinho, sai do banheiro. Como ele ama tais animais! De pequeno assistiu ao desenho do Pluto e mais tarde, foi dono de um agora falecido dálmata que, certamente, está entre os únicos seres que ele amou em sua vida. O que planeja a maligna criatura? A questão ocupa a mente de Caio, se grudando às sensações como uma goma de mascar que, mesmo após perder o sabor adocicado, conta com a compulsão daquele que masca. Ao dobrar uma das viradas íngremes do interior do centro comercial, ele toma consciência da presença exuberante da criatura, no corredor iluminado; à frente da pequena doceira, a criatura guarda na sacola um recipiente de plástico. Esperando a figura abandonar o seu campo visual, Caio ruma à doceira, e encarando a vendedora com olhares angustiantes, começa a fazer-lhe perguntas:
Caio: Aquele ser? Sabe? Que há pouco esteve aqui, sabe? É… é… (suspiros), ele é… (enxugando o rosto com o pulso), comprou alguma coisa? O que foi? Você sabe?
Vendedora (calma) : O último cliente atendido pela loja foi embora a uns dez minutos, senhor.
Caio (nervoso e tremendo): Não…(risos leves)… não pode ser mesmo. Olha você deve estar enganada, afinal, muitas pessoas devem passar aqui e de certo você não está se recordando…
Vendedora (ligeiramente nervosa): Afirmo ao senhor que nenhum cliente apareceu aqui nos últimos dez minutos, meu senhor.
Caio (confuso): Mas… pode ser, que afinal, é… né? Você sei lá, de repente…, não é? Pode ter sido ameaçada pela última cliente e não quer me falar, não é isso? Veja só … o problema todo é o dinheiro, não é? Eu pago pela informação…
Vendedora (nervosa): Não sei o que você quer insinuar , meu senhor, mas eu não recebi ordens de ninguém e , mesmo que recebesse, não falaria por dinheiro e sim por vontade própria. Talvez você ache que todas as pessoas humildes funcionem assim, né? Pois é, mas o senhor está enganado.
Sem dar maiores explicações, Caio, de modo resoluto ,foge do olhar pungente lançado pela vendedora. Ao andar de modo erradio pelos corredores e lojas, ele se detém diante de um recibo, o qual, surpreendentemente, é recolhido por ele , trazendo algum susto aos andarilhos do centro comercial; alguns se põe a pensar qual será o porquê da fúria ,em realizar a busca de um recibo , que é visivelmente, um papel emitido por lanchonete ou estabelecimentos do gênero. Eles nunca irão saber e , provavelmente, o próprio Caio, não saberá tão cedo; mas lá está a confirmação, nas mãos dele: Uma venda de torta de limão, daquela doceira que há pouco ele esteve, figurando como tempo da emissão do recibo , um horário apenas cinco minutos anterior ao presente período.
Fica a desalentar-se por alguns segundos, até que, de tão tumultuados que estão os seus sentimentos, ele se senta num banco. Deita a cabeça no peitoril do assento, esperando pois, aquele mar de sofrimento esvair-se, ou então, aguardando que algo ou alguém o acorde de tão terrível pesadelo; nada disso acontece. Ao endireitar a sua cabeça e abrir lentamente os olhos, percebe serem sensação e lugar os mesmos. Quanto susto derivado daquela experiência de observar o recibo, já que Caio, tem como torta de limão, seu doce predileto.
Como a criatura entreviu seus mais íntimos objetos relacionais ainda é um mistério para Caio. Mas a todas aquelas sensações de tormento e fuga se alia um fato: os acontecimentos ganham um sabor de infância. A fuga e os objetos tem o gosto infantil de um ato de pensar que não consegue se dissociar do sentir; existe andando pelo centro comercial um homem infantil. Os fatos são sentidos em sua totalidade, e , após ele rumar em direção à rua e à saída do estabelecimento, Caio se vê assaltado pelas mais diversas lembranças, inclusive aquela, na qual perdeu o seu dálmata; envenenado pelo vizinho que não mais iria permitir aqueles latidos insuportáveis, o cão morreu aos 7 anos de idade. O adulto infantil se põe a correr rua a fora, sem rumo, numa expressão nômada de sentimentos, na qual o choro toma o lugar dos mais diversos sinais de racionalidade. Pensa imediatamente em se aproximar do ponto de taxi, e dessa feita, ir logo à casa dos seus pais; se engana em seu pensamento infantil: Os pais já estão mortos há tempos. Logo em seguida pensa em ir a sua casa, e ao aproximar-se do taxi, a surpresa atalha sua pretensão: No banco onde se sentam os motoristas, está uma linda moça, organizando numa sacola um recipiente de plástico contendo uma torta de limão e dois animais de pelúcia; o dálmata e o pluto outrora vistos por ele. Lançando a ele um sorriso melífluo e levemente triste, com seu rosto branco cortado pelos cabelos negros e seus lindos olhos verdes, a moça parece uma fotografia. De certo , uma fotografia antiga, já que, as roupas não parecem estar, em absoluto, de acordo com o vestuário o qual ele está acostumado a ver. A linda figura como se saída de uma fotografia, mostra a Caio as suas mãos; não são bonitas como o resto de seu corpo. A palma está cheia de feridas, os dedos enrugados, e por fim, as costas da mão se encontram massacradas e cortadas; olhando mais detidamente ele percebe as grandes rugas e olheiras abaixo dos olhos da moça, e aquela figura, outrora tão altiva, parece estar cada vez mais , aos olhos de Caio, afadigada e rendida. A expressão não é mais tão segura e nem os lábios representam força . Do rosto se extraem os sentimentos mais puros da rendição; qual sejam: a remissão, a depressão e a tristeza.
Tamanha sensibilidade naquele rosto é um fardo ao coração de metal de Caio, já tão fraquejado e desfalecido, após tantas investidas infantis. O ser alienígena e mutante, que se transmuda a sua frente numa jovem figura, percebe facilmente as diversas lacunas deixadas pelo coração de metal; é hora de invadi-lo. A moça vai em direção a Caio e se senta no banco direito do automóvel , a fim de, abrir a porta direita e ir ao encontro dele; não é possível tal ambição. Nos segundos seguintes aquele homem infantil já se põe a correr novamente atrás de uma fuga, que no momento de angústia no qual ele está, parece impossível. Cruza as mais diversas pessoas e nelas esbarra de forma violenta; o ambiente externo não é mais importante, e tão pouco, é por ele levado em conta. Em grande velocidade , tropeçando no chão, o pobre Caio consegue apenas, de quando em vez, dar uma olhadela para trás: a moça o segue resolutamente. O tormento é ora agudo, ora grave, e sem conseguir se configurar para levantar uma resistência, o coração de metal, do pobre Caio, encerra seu funcionamento em meio às emoções tão ambíguas e fortes. As imagens ainda estão coladas em todo seu afeto; não há como esquecer a figura da mãe, dentro do carro com as surpresas e os docinhos, buscando o pequeno menino na escola. A lembrança despertada pela visão ,que Caio, há minutos atrás teve, é intensa. A imagem da moça naquele taxi, sorrindo de modo meigo e consternado, trouxe as lembranças da infância de volta: a mãe, a escola, os doces e os animais.
Pela avenida Faria Lima, cansado e quase sem consciência do mundo externo, ele chora e corre ao mesmo tempo; mas para logo à frente de uma rua, na qual, há um semáforo indicando o vermelho da proibição àquela criança desvairada. A recordação de um líquido vermelho, do sangue da sua mãe, é a única coisa que o semáforo desperta em Caio; a única e fatal lembrança. O sangue e a dor, o pânico e o grito, o suor e o temor, tudo agora lhe pertence, assim como, pertenceram um dia a sua mãe. A luz vermelha que não obsta o corpo da criança, de certa forma a assusta; pela cabeça de Caio passam as imagens mais diversas: Um corpo ensangüentado, a imagem de sua mãe no carro, o pluto, o dálmata, os doces, e a vista marcada. Lembra-se de quando, ao doar sua atenção aos fatos diversos a sua volta, foi atingido por um pequeno tapete; o golpe desferido pela sua mãe pelo fato do menino não estar lhe dando atenção, num dado momento importante a ela, foi seguido pelas mais profundas expressões de arrependimento da mãe, que chorando, abraçava e beijava o filho copiosamente enquanto lhe pedia desculpa. Lembra-se, pois, dos dias como aquele do incidente com o tapete; naquela época o coração de metal funcionava de forma exuberante, era como um grande gigante de ferro. Não é mais assim. Hoje , no presente momento, no exato segundo, o coração metálico está adormecido, enferrujado, desligado e fora de qualquer funcionamento.
Os pés de Caio já tocam a rua quando ele se vira para trás. Vislumbra em seguida uma imagem única: a calçada da Avenida Faria Lima está toda coberta de lençóis azuis e cobertores coloridos, e lá atrás, a moça seguidora joga ao chão a sua sacola, e abre os braços de modo meigo e gentil, quase de forma tênue:
Moça (de braços abertos): Ei !
As lágrimas tomam conta dos olhos de Caio que, a cada segundo, vão perdendo a força visual de tão molhados que estão; ele chora desesperadamente como um bebê. Não só chora como grita. E acompanhando os sentimentos, aquele coração de carne, aquele músculo humano, saltita de forma radiante; o coração de metal se extingue de uma vez por todas. Aos poucos ele sente seu corpo fraco e sua respiração torna-se arquejante. A consternação toma conta de seus olhos através das lágrimas e , com as pernas afadigadas e costas ardendo, ele se deita no chão. Deitado pode ver apenas os pés da moça, que aos poucos , dele se aproximam. O sangue começa a ressumar de seu corpo inteiro e, momentos depois, o sangue cessa o ressumar apenas para começar a verter em quantidade imensa. O gosto das lágrimas se mistura com o gosto de sangue em sua boca, e os olhos, estão banhados pela água rubra que está lotada de vida, cheia de sentimentos; mas é tarde.
A grande multidão se coloca às voltas de algo e, quando chegam os oficiais de polícia e os bombeiros, o bloco humano começa a dissipar-se. Logo, os oficiais do socorro vislumbram o cadáver de Caio, que após ter sido atropelado por uma caminhonete, se encontra inerte no chão, banhado de sangue e completamente deformado. As pessoas ao redor comentam umas com as outras sobre a culpa do acidente; o senso comum atribui a Caio toda a culpa do infortúnio. As testemunhas do acidente, e também o motorista, afirmam que o pedestre havia começado a travessia da rua, e logo, parado; não observando qualquer sinal e confundindo os motoristas, ele acabou atropelado violentamente. No momento da tragédia o sinal estava com a luz vermelha para o pedestre a toda força, segundo os que testemunharam. Morto diante da luz rubra as cores se fundiram, naquele momento, para Caio: o vermelho do sangue de sua mãe e do seu sangue, o vermelho do sinal, o vermelho da coleira do dálmata; todos os vermelhos juntos em várias emoções poderosas e cheias de afeto. E enfim, o vermelho do seu coração humano que, alguns segundos antes de cessar seu funcionamento, fornecera a Caio mágicas sensações infantis , que por um momento, escaparam das barreiras do coração de metal.