Roque e Seu Dia Cronicamente Incorreto

Estivemos na casa do Alexandre e ele nos contou seu dia cronicamente incorreto.
Afinal de contas ele merecia um dia pra lá de bom e com tudo o que aconteceu, ele ainda tecia comentários a respeito dos fragmentos que o dia havia deixado em sua retina. Seus olhos atordoados pelo dia e pelo excesso de bebida giravam em si mesmos sem saber ao certo, se tudo o que ocorrera fora realmente merecido, pois até o que fora bom, deixava de ser, dependendo do ângulo observado. E o ângulo que Alexandre observava no momento não era o mais positivo.
Havia ele trabalhado na ‘bendita’ loja, como costuma chamar tudo aquilo que ele não gosta, não ta afins e não sabe como dar um pé na bunda. Bendita, dito por ele tem um tom de enfado, de saco cheio. E mesmo que seja o único saco restante, ele está cheio. É isso que seu tom de voz denuncia quando diz bendito ou bendita. E ainda com aquele sotaque paulistanês, de italiano com sangue migrado…
Alexandre, o Roque Em Roll, estava assim indignado nos contando que começara seu dia na bendita loja na hora de ir embora ­ ou seja, no final do dia ­ quando sua amável sogra, a quem ele carinhosamente chama de Ogra apareceu. Todos nós que conhecemos Roque, sabemos o que isso significa. Ela apareceu depois do trabalho terminado, e mesmo se não estivesse, não faria a menor diferença, pois não colocaria as mãos naqueles ‘benditos’ sprays que Alexandre estava usando para pintar as prateleiras da loja, e que, além de ter um cheiro horrível, havia manchado tudo à sua volta e intoxicado levemente nosso amigo.
Ogra – a sogra – não é uma senhora de fácil trato. Ela ama nosso amigo tanto quanto ele a ama, e o que complica mais é que ambos dividem uma pessoa. No caso filha e esposa, respectivamente.
Ser duro na vida é um problema, porque nos tira a dignidade de ir, vir, subir, descer, rosnar, gritar, encher, cansar… E passamos a obedecer, ou no caso do Roque, concordar. E ele concordou em ir de ônibus para casa, enquanto Ogra ­a sogra ­ seguia, festeira junto à filha no carro onde ele se recusava a entrar, por ter de dividir o mesmo ar com Ogra.
Mas assim tinha de ser e assim foi.
Afinal a sogra de Alexandre é uma senhora… Como poderia ela ir de ônibus ???
Não me perguntem:
– Ah, e como ela chegou lá?
Simplesmente não sei. Só prestava atenção à narrativa, que pelas expressões faciais de meu amigo, mostrava ter muita história pela frente.
Logo que se colocou a caminhar em direção ao ponto de ônibus, o primeiro impacto urbano irrompeu seu cérebro com a fúria da desestrutura emocional que qualquer cidadão cosmopolita sente quando vê o que o Roque viu.
Justo o Alexandre ver uma cena daquelas. O Roque e suas justiças. Seus princípios de bons modos que o acompanham desde que nasceu, os quais inclusive sente orgulho e nos dá orgulho, pois todos nós ­ mesmo os loucos pensadores ­ temos um pé no que é correto e decente. Eu, por exemplo, certa vez fazendo compras num super mercado, vi um senhor pagar a conta e esquecer uma escova de dentes (eu estava precisando tanto de uma escova de dentes nova…) e o chamei de volta para lhe devolver, em vez de, brasilianisticamente, empacotar a escova juntamente às minhas compras. Tsc, tsc, tsc… Levei a maior bronca de meu pai Não entendi. Mas me senti feliz por devolver. Meus valores também são nobres. Só não viram crônicas.
Então, justo o Roque que é um cidadão incapaz de roubar um alface na feira ­ seu local preferido para ir às compras – ver, de repente dois representantes da revolta dos ‘eu­não-tenho-mas-quero-a-qualquer-custo’ arrebentarem os vidros de um carro para roubar um toca-fitas!!!
Ah, não! Já não bastava ter de ir de ônibus para casa, pensei eu, uma preguiçosa convicta. Eu, com certeza, estaria amaldiçoando a sogra até agora…
Exato, além de nosso amigo ter de ir de ônibus para casa, era obrigado a presenciar algo que o lembrava pela milhonésima vez, em sua existência que moramos em um país socialmente desigual, uma situação lastimável, além do que, ele não compreende o porque da pessoa agir daquela forma.
Ou compreende.
Ainda não conversamos sobre o assunto.
Os dois marmanjos quebraram o vidro, levaram o toca-fitas e deixaram o Roque, imagino eu, com aquela cara de quem foi feito de bobo, ou com a cara que costuma fazer quando ninguém escuta-o tocar violão, ou seja, cara de quem não entendeu nada.
Isso não abalou Alexandre ­ O Roque Em Roll ­ até porque tinha uma viatura da polícia ali perto, a qual foi avisada do furto e colocada em ação por nosso amigo.
Próxima parada…
Um oásis surge na frente do Roque!
Um cantor de rua dos bons canta e toca para uma pequena multidão em torno de si, o que faz o delírio da platéia que se forma, até porque sexta-feira a tarde, som de graça sempre é bem vindo!
E nosso personagem faz sua parada mais do que merecida ali mesmo!
Segundo ele, o cara tocou Caetano, Gil, Djavan entre outros. E com qualidade!!!
E deve ter sido muito bom mesmo, porque o Roque é exigentíssimo no que diz respeito à música.
Uma hora e meia de show de graça! Para mim e Silvio, um êxtase, com certeza!
Puxa, valera a pena! – pensava e tentava falar, eu, a inescutável, porém observadora amiga.
E todos rimos pela felicidade do Roque, enquanto ele contava com detalhes o show do começo ao fim com o entusiasmo que o caracteriza, e a dialética que nos faz sentirmo-nos presente á acontecimentos aos quais nunca estivemos de verdade.
De repente ele franze a testa, olha para Silvio e diz:
– Então, cara… só que daí, quando eu tava descendo do ônibus aqui perto de casa, um cara foi atropelado…
Ninguém acreditou.
Cheguei a rir… parei rápido.
Um vai e vem de situações. Um bicho-da-seda do bem e mal. Um teste fatal de resistência cerebral?
Roque estava mal. Aquilo não faria bem a ninguém. Mudanças sazonais de informação, ora positiva, ora negativa – e sejamos sinceros, mais negativas do que positivas – faziam de nosso amigo um questionador, naquele momento, mesmo que ele não percebesse ou desejasse.
E a nós todos, companheiros de seus questionamentos.
Ultimamente para mim, isso já nem é um hábito. É uma espécie de não saciado apetite mental, incontrolável já que não desejado com tanto ardor, e atormentador, quando presente, por transformar meu cérebro em algo semelhante a uma usina que não para instante algum, seja dia ou noite, mas isso é um outro caso…
Como aquilo que eu ouvia era uma outra história que surgia como apelo em meus ouvidos, e sabia eu, estaria aqui narrando-a, muito em breve. Como estou.
O ponto de vista comum a nós três, que compartilhávamos a história no momento, era que o dia havia valido a pena pela visão mágica do show…
– É, cara, o show foi demais. Tão bom que nem sei mais se sou músico de verdade. Talvez músico seja aquilo que o cara é. Eu sou um nada… eu não toco bem… não canto bem… estou acabado…
Alexandre ­ O Roque Em Roll ­ não tem esse nome á toa não…
Começa que Roque é seu nome real junto com Alexandre, o que, se pelo menos não garante uma espécie de profecia, ajuda a entender uma série de coisas. Como sua paixão, pelo rock’n roll. Ele me chamaria de louca, mas adoro essas coincidências.
Mas naquele momento Roque não queria saber de profecias…
Ainda bem que não dei uma de ‘mãe dos loucos’, como ele costuma me chamar e não o lembrei desse fato.
Seria um vexame, na certa…
Com o tempo a gente aprende a não falar nada, mesmo achando que o que temos para dizer poderia levantar nosso ânimo se estivéssemos no lugar da pessoa que queremos socorrer.
O nosso ânimo, em geral, costuma ser bastante diferente do das demais pessoas.
E para evitar maiores males, aprendi com o tempo a me calar. Também aprendi que quando alguém está para baixo, a força que fazemos para coloca-lo para cima pode nos cansar e cansar o outro. Então, o melhor é se calar e apenas fazer companhia á quem vive aquele momento. Até porque tudo depende da personalidade que habita o outro ser à sua frente.
Existem aqueles que estão loucos para serem compreendidos e contrariados. São as vítimas irracionais do próprio medo de se perderem. Há os que nem parariam para observar a sazonalidade de sentimentos pelas quais passaram, e há, ainda aqueles que simplesmente raciocinam o fato o resto do dia. Ou da vida…
Vários fatos, inclusive os bons, podem tomar dimensões dantescas quando nos viramos de cabeça para baixo, por não estarmos naquele dia de serenas, porém viscerais expressões.
Esses são os piores dias. E quando eles acontecem, parecem nos dizer, que mesmo não tendo assistido um roubo, avisado a polícia a respeito do fato, assistido um show gratuito e bom, e por fim presenciar um atropelamento, estaríamos na mesma situação que a bebida nos coloca, quando nos torna psiquiatra de nós mesmos.
Papo de Freud, mas que dá o que pensar.
– E o pior, gente ­ Roque nos chama atenção após se recompor de seu desabafo ­ é que falei com a polícia e meu nariz estava com os pelos brancos, respingados pela tinta que usei para pintar as prateleiras… usei máscara, mas não adiantou. Ficou tudo branco…
Dos males, o menor, penso eu.
A polícia podia o ter prendido, achando que era cocaína e a Ogra ia deitar e rolar…
Dia bom é aquele que no balanço de perdas e danos, quem menos perdeu foi você.
Você não precisou andar no mesmo carro que Ogra ­ a sogra -, não foi assaltado, não despertou depressão em ninguém, não foi atropelado, e por fim, descobre-se: não foi preso por algo que não cometeu.
E ainda nos chamou para um churrasco daqueles!