Saudades Daquele Amanhã

Era como se tudo aquilo tivesse se tornado um mero ritual de conivência mútua, o segredo de uma não-verdade compartilhada. Os dois sabiam que a relação chegava ao fim, e era tão triste ver a máscara que colocavam sobre os próprios rostos tentando esconder o que já era tão evidente.
Eles sofriam com a idéia da distância. Ele, que até então só conhecera o sexo sem o amor, na carne dela descobriu o amor com o sexo, e sabia, sabia que nunca, nunca mais suportaria uma nova ausência, como quando naquela vez em que ela atendeu um telefonema de mulher para ele, e após ciúmes e discussões, ela lhe dissera que nunca mais voltaria, e foram os dias mais longos e mais terríveis de toda sua existência. Ela, que jamais tivera outro homem, não sabia o que era a vida sem ele, e não queria sequer imaginar o semblante de outro corpo sobre o dela no ápice do gozo – a boca dele semi-aberta, os olhos cerrados, as mãos espalmadas contra as dela, a respiração acelerada.
Ele, pelo menos, já passara pela provação de ver o que era a vida sem tê-la ao seu lado, ainda que por poucos dias. Mas ela só tinha ele, só teve ele, era uma criança quando o conheceu, 14 anos!, uma criança. E nunca mais pretendeu – ou teve vontade – de vivenciar uma outra paixão, ignorando todos aqueles que lhe diziam que ela “iria acabar se casando com ele, sem ter conhecido outro homem, pensando que aquilo fosse vida, e não era, a vida eram as experiências, as experiências!”.
Pensavam – sobretudo ela – que o amor fosse como o fogo, capaz de se reacender por um ímpeto, uma vontade, uma comodidade. Não, não era. E queriam achar uma vontade de carícia guardada na imortalidade íntima deles, para ofertar ao outro e, assim, tentar o re-recomeço daquela história. Perceberam que era inútil. Perceberam que o fim estava próximo, tão próximo que tiveram pena de si próprios, e sofriam a cada olhar trocado, a cada sorriso dissimulado, a cada beijo de uma rotina cuja derrocada chegara, afinal. Não queriam que tudo acabasse, não suportavam a idéia da solidão, sem notar que a solidão já era muito mais viva quando estavam juntos do que sozinhos.
“Irônico”, pensou, ele que sonhara tanto com ela, com a chegada repentina dela, ele que a desenhara em seus sonhos, imaginando encontrá-la ao acaso, tal como o poeta trágico fizera com a sua menininha, naquele divino romance do Cony. E foi ao acaso, sim, que ela chegou de repente, fôra tão rápido e tão inverossímil, e o mesmo acaso agora a tomava dele, a levava de volta como se fosse um empréstimo, ela estava indo embora, enfim. E a menininha que ela sempre fôra, a menininha dele, a menina com uma flor em que o Vinícius se inspirou sem saber, agora era mulher, aos olhos do mundo, uma mulher, aos olhos do mundo. Continuava sua menininha, a mesma que emburrava quando ele lhe prometia contar o segredo do amor, mas amanhã, só amanhã, e sempre um amanhã que jamais chegava, era a menininha dele, linda e emburrada, “amanhã eu conto, tá?”. Desculpe, querida, eu sei que amanhã já será tarde…
Foram pela última vez ao cinema, com a convicção de que era a última vez. Ali, anos antes, viram o primeiro filme juntos. E já na fila se emocionaram, e se deram as mãos, num gesto que já não fazia mais qualquer sentido, e pensaram que, talvez, se desse um jeito, “vamos dar um jeito”, pensaram juntos, sem saber. Fôra naquele cinema que trocaram as primeiras carícias, os primeiros beijos, o primeiro tudo, onde se estudaram detalhadamente, como dois cachorrinhos que se cheiram, trocando as primeiras seduções e os primeiros arrepios. E só ali, portanto, poderiam, quem sabe, encontrar algum pedaço de memória perdido nas fileiras das últimas poltronas, e então sentaram-se nos mesmos lugares do passado. As poltronas pouco confortáveis, emblema comum na eternidade dela e no abismo dele, ficaram para sempre como a recordação mais viva daquele amor, como o contra-símbolo do abraço que a recolheu naquele dia como um bebê abandonado, um bebê para sempre protegido.
Quando se sentaram, observaram ao redor em busca de algo, algo que fosse uma referência comum, um achado comum. Se entreolharam, em silêncio, e tentaram ainda um tímido carinho. Não conseguiram ver o filme, porque logo no início ela começou a chorar de modo que ele não percebesse, e ele percebeu, mas fingiu que não, e ela percebeu que ele percebera e disfarçara. Ele teve uma súbita vontade de abraçá-la, de implorar que continuasse amando-o, de dizer “não vá, não vá, querida…”, mas não o fez. Sabia que ali era o fim. O fim deles. O fim dele. Olhou para a tela, não sabia o nome do filme que estavam assistindo, quanta coisa a dizer, quanta coisa a silenciar, não foi você quem me prometeu amor eterno?, ah, o amor!, o amor!, sempre ele, volte, por favor, saudades de ti, saudades.