A Propósito de Sinos e Carrilhões

O único lugar na fazenda onde não podíamos entrar sozinhos era a casa da sede. A casa enorme, branca, e silenciosa. Quase sempre vazia, um desperdício. De raro em raro vinham visitas, acompanhadas do patrão, o dono da fazenda. Ele chegava, chamava meu pai, que lhe passava todas as informações de como ia tudo. Nenhuma novidade, a fazenda praticamente andava sozinha. Meu pai à testa. Recebia algumas recomendações, o dinheiro do pagamento dos peões, e não havia mais o que falar.
De quando em vez, o patrão dava uma volta a cavalo, no Pará, um cavalão ligeiro, mas dócil, bom de sela, de andadura macia. Meu pai ia no Maranhão, um alazão de igual tamanho mas muito mais arisco, impaciente, não era cavalo pra cidadão. O homem patrulhava junto com meu pai as divisas, olhava as plantas, o gado, pastos. Fazia algumas perguntas pertinentes para se atualizar. Gostava do que via. E era só. Nunca ficava mais do que dois ou três dias.
O resto do tempo a grande casa ficava quieta. Só entrava lá uma mulher para fazer a limpeza. Meu pai abria a pesada porta da frente usando as chaves dum chaveiro que trazia constante na cintura. Permanecia lá até que a mulher terminasse seus afazeres. Nessas ocasiões matávamos nossa curiosidade. Eu e meu irmão mais novo andávamos pelos cômodos grandes, os móveis pesados, prataria, louça desenhada. Não tocávamos em nada, o medo de quebrar alguma coisa, de tirar do lugar, e de deixar um indício que fosse da nossa presença indevida.
No longo corredor, ficava lá no fim o carrilhão antigo da fazenda. Na obscuridade mesmo sendo ainda dia. Alto, um móvel escuro, a quietude rompida apenas pelo seu coração metálico batendo na penumbra. Olhávamos a medo, respeitando o carrilhão como se ele fosse uma pessoa incumbida da vigilância daqueles largos domínios. Com a maior curiosidade ficávamos observando aquilo balançando sem fim, o ponteiro dos minutos, o único que conseguíamos ver seu movimento. O das horas lento, parecendo imóvel, mas andava à socapa, traiçoeiro, comendo as horas devagarinho. Nem percebíamos o tempo escorrendo.
De repente, o susto! PLOM! PLOM! PLOM! O carrilhão, como que irritado com a nossa intromissão, explodia em batidas intermináveis. Gritávamos juntos, de puro medo, o coração entalado na garganta. Ficávamos, eu e meu irmão, mudos, paralisados, aquele som terrível refluía corpo adentro, como uma descarga elétrica, pregando-nos no chão. Até nos recuperarmos. Então saíamos desabalados, xingando o diabo do bicho barulhento de tudo quanto é palavrão conhecido. Assustados, mas depois riríamos nervosamente, ainda trêmulos…
Naquela noite sonharíamos: o enorme carrilhão com sua batida grave e lúgubre nos denunciando, gritando ao mundo inteiro: Eles estão aqui!!! No lugar proibido, onde não se podia mexer em nada. Respiração presa, o pavor.
Mas havia na fazenda um som que gostávamos. Era na hora do almoço, quando o sino da porta de casa batia, agudo, estridente. Tinia. Era minha mãe anunciando que a comida estava na mesa, liberando os camaradas para o arroz com feijão, pimenta, farinha e carne de porco… O cheiro bom dos temperos se espalhava junto com o som dolorido do sino pequeno. Ia longe, insistente, blém, blém, blém!!…Eita, lembranças boas! O som dividia o dia em dois, o dia madrugador de antes do almoço e o dia lento da tarde. Até a hora da janta, quando soava só uma vez: Bléimm!! …e emudecia….Já vinha a noite.
Então, era rezar obrigatoriamente as ave-marias de praxe, um pai-nosso, meio engrolando as palavras, fazer o nome-do-pai, os olhos fechando… e dormir.
Acordávamos com o retinir do sino. O sol ainda nascendo…
Novo dia…