Nossa casa ganhou, há poucos dias, por coincidências da vida, um relógio antigo. Cheguei do trabalho e, espantada, dei com ele ali, na entrada do hall, já dependurado na parede. A primeira sensação que tive foi de mal-estar: esquisito esse relógio aí, não combina com nada desta casa, e, confesso envergonhada, fiquei um pouco chateada por terem colocado aquela coisa ali, uma espécie de invasão para a ordem que dou aos meus quadros e vasos.
Era o começo da noite e eu cheguei cansada, um dia inteiro falando, explicando, mas que coisa é essa agora desse relógio estar ali sem que eu o quisesse, autorizasse?
Olhei meio que zangada pra ele, era um bonito relógio, sem dúvida, abri a porta que abriga a máquina, olhei aquil : tão estranho, tão atemporal, não-meu. Encontrei uma chave para dar corda… Relógio xereta, invasor, pensei… tiro você daí em dois minutos, é só chegar quem o comprou e você vai ver: vai voltar para o lugar de onde veio.
Às oito, estava eu na cozinha e fui surpreendida pelas badaladas.
Vim caminhando guiada por elas, tão lindas, o coração se lembrando, se lembrando, quando cheguei à sala onde ele está, meu coração estava irremediavelmente apaixonado: ah, relógio antigo, aquelas badaladas caíram dentro da minha alma como uma canção que eu mesma reconheço ser parte dos sons da minha infância.
Fiquei ali, parada na frente dele, olhando o pêndulo que marca os segundos, tudo por um triz nesta vida…
E ontem, de madrugada, enquanto a casa dormia, lá longe, no meu quarto, eu ouvi as doces badaladas. Fiquei ali, no escuro, escutando aquele som antigo, uma emoção fininha qualquer me tomou. Eu nunca confessei o que vou dizer, talvez nem para mim mesma, mas eu sempre quis ter esse relógio antigo, ouvir essas badaladas só música, tempus fugit, tempus fugit, tempus fugit…
Hoje, um dos meus alunos, falando comigo sobre o futuro me disse: professora, daqui a vinte anos eu quero estar na minha melhor época profissional… Fiquei olhando pra ele, quase um menino: Quantos anos você terá daqui a vinte anos? Ele me olhou , pareceu sorrir, e disse: trinta e oito, Esther…
Quando vim para casa, na rodovia, pensei no meu relógio: Daqui a vinte anos, fará soar as horas como hoje? E eu, como estarei, se estiver viva, daqui a vinte anos?
Fiz contas, pensei que o tempo tem me sido bom, que não tem me deixado tantas marcas externas, embora meu coração carregue o mais difícil: as marcas de dentro, essas, as indissolúveis.
Daqui a vinte anos, nesta nossa sala grande e silenciosa, tocará esse relógio e sua música dos anjos? Tempus fugit … tempus fugit… tempus fugit…
Olho, diante do relógio, o pêndulo que marca os segundos: para lá e para cá, para lá e para cá. E esse relógio encantado, tão bonito, foi como se um aviso, um alerta, uma esperança: o tempo vai embora, é preciso viver plenamente a existência. Não aceitar o que me impõem, viver a verdadeira vida, o que há de verdadeiro na vida, o que vale a pena ser repartido na vida.
Toca o relógio sua música de tempo e, a cada hora, me avisa, me avisa, me avisa: hora de cuidar do bem mais precioso, Esther. Nossa casa ganhou um relógio antigo. Deixei-o lá, na parede entre o hall e a sala de visitas e sua música do tempo parece me avisar, a cada instante, que há muito por fazer, há muito por fazer, há muito por fazer… ainda.
Por enquanto, só tenho dele a chave de dar corda, mas um dia, quem sabe, a mim me pertença a música, assim tão linda, assim tão linda…