Uma Jaca no Escuro

Fomos a São Paulo num fim de semana desses: calor enorme, paramos já na volta, para comprar cocos, mas eu – ah meninice tão distante! – pus os olhos sobre uma jaca! E o dono do caminhão me convenceu em dois tempos, rara delicadeza de pessoa:
– Minha amiga, qual é mesmo a sua graça?
Há quanto eu não ouvia isso, digo assim, de maneira tão simpática?
Quando eu disse o meu nome, ele me olhou, olhou e concluiu:
– É bíblico… leve a jaca, são 3 reais, leve minha amiga…
Tive vontade de dizer que não, que em casa ninguém gosta, só eu, que o cheiro invade tudo, que minhas empregadas detestam e acabariam por me expulsar de casa. Mas os olhos dele eram respeitosos e bons e eu disse, num repente:
– Levo!
Trouxe a tal jaca, fruto tão antigo, talvez, quanto o primeiro homem sobre a face da terra. Meu filho menor torcia o nariz: credo! Meu marido preferiu o silêncio dos que sabem que é melhor calar diante de uma mulher e uma jaca… as duas tão inesperadas…
Chegamos com início de chuva e eu a coloquei sobre a mesa da sala de almoço, imaginando que na manhã seguinte minha Marisa ficaria danada : trabalhando há dois anos comigo, seria a segunda jaca que ela… descascava. E a primeira, confesso aqui, não foi boa experiência : as mãos grudaram dedos, meleca dos diabos e… aquele cheiro.
A casa dormiu, mas eu nem durmo, fico no computador, vejo filmes ou escuto música, leio, escrevo. E então desabou sobre a cidade uma chuva terrível, uma quase tempestade que me assustou: marido e filho dormiam placidamente e os raios terríveis despencavam sobre as casas.
De repente, lembrei-me de que , embora tenhamos luz de emergência à mão, eu havia deixado sobre a mesa da sala de almoço, bem perto da fruta comprada, uma vela e um isqueiro. O vento zunia nas árvores de lá fora. E a luz se apagou. Com medo de que meu filho ainda pequeno acordasse no escuro, entre raios e trovões como se dos primórdios, deslizei pelo corredor, tateando, as mãos na frente do corpo, mais cega do que na mais profunda de todas as escuridões. Alcancei a sala de almoço, não sem antes bater o ombro na porta: que tipo de cegueira é esta, momentânea , mas tão funda?
E de mãos estendidas sobre a mesa, alcancei com a ponta dos dedos a fruta agora misteriosa: uma jaca no escuro! Ah, nem sei o que me passou pela cabeça naquele momento! Uma jaca no escuro, senhoras e senhores, é uma coisa louca de se aprender como lição.
Fiquei ali, os dedos experimentadores, diante da experiência sem olhos para ver. De pé, a ponta dos dedos tateando, eu era uma mulher tentando entender o mundo e o mundo era, agora, aquela tempestade lavando o mundo, e esta jaca inesperada no escuro…
Senti o cheiro adocicado. E era como se uma jaca no escuro da noite jamais pudesse acontecer sem que trouxesse seu odor selvagem que meus antepassados um dia, nos quentes das profundezas da floresta, um dia sentiram atônitos.
Fiquei ali, as pontas dos dedos sentindo os quase-espinhos ouriçados. Eu era, ainda que momentaneamente, cega entre os cegos. E estava inquieta, surpresa e maravilhada.
A música da tempestade continuava com seu chicote de águas contra os vidros. Sentei-me na cadeira, pensando em quanto era estranho ver com a ponta dos dedos. E ri, aflita e destemida, tal como um cego, certamente, também ri em seus vazios sem luz.
Não acendi a vela, não fui atrás de luminosidade.
Estive ali sentada e meu corpo, casa que me abriga, me abrigava mais uma vez. Estava tentando compreender o mundo das coisas que estão escondidas e que não vejo porque não quero, não pressinto porque não tenho a urgência: tenho olhos. E aquela jaca, assim no escuro, me mostrava que nem tudo o que existe eu compreendo, nem mesmo o que a ponta de meus dedos sentem porque tudo, e todas as coisas me seduzem, me levam e me ensinam que ainda há muitos meios de ler a vida.