Uma Rã Sem Medo E Um Beija-Flor Encantado

Vivera tudo, pensou rindo, tudo vivera: desde a casca grossa das árvores até suas raízes profundas e abissais. E já nem tinha medo de mais nada: uma rã saltara, pequenina e escura sobre a pia ­ era um dia de chuvas muitas – e ela apenas sorriu, percebendo que a colher brilhava , esplandecente… E disse ah! quando a rãzinha grudou na blusa branca, broche vivo, gelado.
Inclinou a cabeça viu uma pequena rã em pânico, aquele mundo minúsculo e cheio de mistérios… Fez a mão em concha sem nenhum nojo e sentiu-a saltar, abriu a porta e colocou-a no jardim, entre as folhas verdes que também gritavam mistérios.
Nada mais a assustava senão a brutalidade das criaturas bípedes, desemplumadas, com seu ar inumano, seus olhos fugidios, suas cicatrizes na alma, seus vícios inconfessáveis, sua crosta de crueldade escondida sob o manto da bondade amiga.
Teve saudades de árvores e de odes e de certa tarde tão feliz. Eram, afinal, saudades dela mesma, concluiu.
Um turbilhão tão grande lavou-lhe os olhos assustados.
E um cheiro de incenso e rezas alcançou-lhe o cerne da alma, lá longe,onde a carne crua dos dias jamais pode alcançar.
Os olhos da rã, vazios de notícias e pensamentos. Seus próprios olhos, medrosos de espiar o mundo.
Chovera o dia todo dentro dela e o dia inteiro ouvira Haendel perguntando-se para que, por que. Riu, sempre ria, surpreendida: as rãs e o mundo são imprevisíveis, pensou.
Haendel também.
Depois, pensou num beija-flor preso dentro de uma caixa e imaginou que, se em prédio morasse, abriria a janela, assim,no início da noite, e o deixaria voar. Sopraria o beija-flor: vai ser feliz! E o devolveria à natureza de árvores e folhas , bicos e asas.
Quem sabe se plantado o beija-flor não fosse árvore?
Mas ninguém entende o que diz: o homem, porque deve soltá-lo; o beija-flor porque nunca foi pássaro.