Um Político Bem Brasileiro

Gapito vivia no sertão de Tabuí. Roceiro mesmo. Escola passou longe dele. Mal conseguia juntar as letrinhas para formar algumas palavras. Trabalhador e teimoso com carestia da vida. Para quem perguntava se era da roça, vinha logo a resposta:
– “sô não, a roça é que é minha!” ou – “moro na roça não, moro ritirado dela umas vinte braça!”.
E Gapito ia teimando, zunhando daqui e zunhando dali. Mãos calejadas, pele escurecida pelo sol, pés grossos e rachados facilitando a entrada de bicho de pé. Gapito adorava a coceirinha provocada pelo intrometido e deixava-o lá no pé se enchendo e coçando, e coçando…
Mas um dia Gapito desanima. Dava mais conta de viver da roça não. Era sofrimento demais trabalhar de sol a sol para ganhar uns minguados trocados enquanto lá no Tabuí os poucos que trabalhavam o faziam na sombra e sem muito esforço. Juntou a muquiça que tinha, a mulher, os três filhos, uns porquinhos magros e umas galinhas cambetas, uma cabra pra dar leite pros moleques, um cavalinho manqüeba, um punhado de milho, um saco de arroz, meio de feijão, uma dúzia de rapaduras e um litro de pinga. E se mandou pra Tabuí.
E não é que a vida ficou mais apertada? Negócio foi vender as galinhas. Escreveu uma plaquinha que pregou na porta do seu barraco: “VENDEM-SE GALINHAS”. Povo entendeu o aviso. As galinhas foram todas passadas nos cobres. No aperto seguinte foi a vez dos porcos: “VENDO LINGISSA”. A lingüiça do Gapito ficou famosa em Tabuí e foi através dela que ele começou a se tornar popular na cidade, ainda mais porque tinha a conversa solta. Falava mais do que o homem da cobra. Mas os porquinhos foram acabando e, logicamente, começou a faltar matéria-prima para fazer as suas famosas “lingissas”. Negócio foi vender a cabra, juntar mais uns trocados e comprar uma charrete velha. Gapito era homem jeitoso. Logo logo arrumou a charrete que ficou como nova. Atrás dela escreveu: “CAROSSA DE ALUGEL”. Daí pra frente não tinha quem não conhecesse o Gapito na cidade. Serviço pra sua “carossa de alugel” não faltava e ele sempre defendia um dinheirinho no final de cada dia. Todo mundo via o esforço dele e ele, embora pobre, passou a ser bem visto até pelos menos pobres. Ninguém olhava pra ele com o ar desconfiado e superioso mais não.
Mas o nosso herói logo descobriu que o negócio de aluguel de carroça não era lá essas coisas não. Dia dava, dia não dava. E resolveu juntar a esse negócio um outro. Montou barbearia. Comprou tesoura, cadeira, um espelhinho e uma navalha e foi aprender na cabeça alheia cobrando barato. Logo mais uma plaquinha apareceu na frente do lote do Gapito: “FAÇUME DE BARBA, CURTUME DE CABELO E APARUME DE BIGODE”. Pregado na parede da sua sala que funcionava como barbearia, uma frase toda colorida e enfeitada que ele encontrou num almanaque de capivarol: “Cana na roça dá pinga e pinga na cidade dá cana!” Isso era sempre um lembrete para ele e pra freguesia nunca exagerarem na hora de tirar a poeira da goela.
Um dia Gapito resolveu que ia melhorar mais ainda de vida. Já que era tão conhecido na cidade, tão popular, porque não tentar outra coisa? Decidiu ser vereador. Conversou uns amigos, uns conhecidos, aconselhou-se com padre Anacleto, pediu apoio do prefeito, fez uns discursos caprichados nalguns botecos, dobrou a língua fazendo outros nuns comícios e virou vereador. Um dos mais votados da cidade. Gapito tava cada vez mais vivo. Todo mundo gostava de conversar com ele, até para ouvir as pataquadas que falava e que ele, como vereador, nem se preocupava em corrigir. Falava como sempre falou na roça, sem nenhum ligamento para as regras da gramática.
Gapito descobriu que, estando na política, podia até largar um pouco sua “carossa de alugel” e sua barbearia. Ganhava o salariozinho de vereador e já tava bom demais. Melhorou mais ainda quando foi escolhido pela edilidade o presidente da Câmara Municipal. Era o máximo. Vendeu sua “carossa” e os “trens” da barbearia e deixou o poder subir à cabeça. Começou a descobrir maneiras de fazer tramóias e sempre entrava um dinheirinho a mais no bolso por meios reversos. Empregou na prefeitura a mulher, uns parentes e uns cabos eleitorais. Ele e o prefeito passaram a ser unha e carne. Deu um jeito de comprar, através da Câmara, um carro novinho, novinho e mandou fazer placa especial de cor preta: “PODER LESGISLATIVO MUNICIPAL – PRESIDENTE – Nº 1”. E povinho de Tabuí, bom pagador de impostos, começou a falar mal de Gapito. Colegas edis também. E ele, como vingança, passou a deixar de fazer as reuniões semanais dos vereadores.
– Bobage, gente! Quarqué coisa eu resorvo! Riunião é perda de tempo! É mais mió a gente vê novela!
Apareceu um cabo eleitoral lá da roça. Queria emprego para a filha. Moça prendada, bonitinha, educada, mas muito vergonhosa.
– Dexa cumigo que eu resorvo. Pode ir embora, mas dexa a moça aqui.
Gapito levou a moça para casa. Passou a dar-lhe do bom e do melhor e a andar pra baixo e pra cima com ela no seu carrão novinho. Povinho passou a desconfiar daquela história. Todo mundo de butuca, esperando os acontecimentos. Mulher do Gapito não tirava a pulga de trás da orelha, mas não dava nenhum palpite. Só que passou a refugar o seu homem na cama. E o negócio passou a pegar mal mesmo foi quando ele quis empregar a moça no seu gabinete.
– Mas, nobre vereador, todo mundo tá falano mal, dizeno que tem treta aí, a moça não sabe fazê serviço de escritório…
– Antão tá bão! Bota ela como professora na escola da prefeitura!
– Mas, nobre vereador, a moça num sabe lê e nem escrevê! Cumé que faiz?
– Tá bão! Tá bão! Intão… Faz seguinte: aposenta a moça, dexa ela por minha conta e aí a gente resorve de um vez dois pobrema!
Foi por essa época que aconteceu outro fato curioso na vida do Gapito. Ele, depois de tanto ganhar um dinheirinho extra, resolveu melhorar sua casa. Virou um luxo a casa do homem. Na hora de pagar a conta, o seu secretário da Câmara foi fazer o cheque, já que Gapito não era muito chegado em escrever nesses documentos e em nenhum outro. Sessenta mil.
– Nobre vereador, sessenta é com esse ou com cê cedilha?
– E eu sei? Faz seguinte, pra num cumpricá as coisa, faz dois de trinta e tamo resorvido!
Nessa época também ele resolveu comprar um touro para dar de presente prum seu compadre fazendeiro. Touro do melhor, raçudo e metedor. Mandou o secretário dar jeito de pagar o bicho com verba da câmara ou da prefeitura.
– Mas, nobre vereador senhor Agapito em que rubrica devo colocar essa despesa? Não tem jeito não!
– Tem. Cê se vira! Eu te pago pra isso!
O secretário passa uns dias tentando descobrir onde esconder essa falcatrua e não consegue. Touro era muito difícil pagar com dinheiro do povo. Volta no chefe.
– Ó sô Gapito, tem jeito memo não, viu! O negócio do touro num tá dano pra iscondê. Até o prefeito tá assustado!
Gapito pensou, pensou… Craniou, craniou… E descobriu na hora uma solução:
– Já sei! E tá resorvido! Num quero sim e nem não! Bota o touro na conta da Secretaria do Tourismo e pronto! Tamo cunversado!
E a Câmara Municipal passava meses sem reunião. Foi aí que, depois de cinco meses e em meio a tantas maracutaias, o povo e os do outro lado pressionaram tanto que Gapito teve que marcar uma reunião. No dia certo tava todo mundo da vereança lá. Salão lotado de povo. Gapito doido para arrumar desculpa e acabar com a festa. Todo mundo tinha coisas de que acusar Gapito e o senhor prefeito mas ninguém queria ser o primeiro a falar. Silêncio sepulcral. Um vereador olhando pras paredes, outro pro teto, outros cochilando com um olho só, como se aquilo não fosse com eles. Aí Gapito aproveitou a deixa. Como se estivesse puto da vida, deu um murro na mesa, quase desmontando a coitada, e gritou do alto de sua autoridade:
– Óia aqui ô cambada de fedaputa! Riuni nóis riunói, parpitá qui é bão ceis num parpiteia, eu pego e sungo a sessão!
E sungou mesmo. Tabuí ia passar mais uma boa temporada sem reunião da edilidade.