OS QUATRO AMIGOS Marcos “Quatro Olhos”, Daniel “Maracanã”, Renato “Piroca” e Afonso curtiam vagar pela noite teresopolitana, depois de terem fumado maconha.
Aproximava-se a meia-noite e passavam de carro defronte do cemitério, na periferia da cidade. As estrelas cintilavam na abóbada celeste sem que se lhes interpusesse qualquer nuvem, despertando sentimentos de júbilo. Renato, que vinha ao volante, freou o carro:
– O que aconteceu? Algum problema? – perguntou Marcos.
– Vamos entrar! – respondeu Renato.
– De novo? Já estivemos aqui na semana passada. – protestou Afonso, recostando-se ainda mais no assento para mostrar que não tinha a menor intenção de sair do carro.
– Todos para fora! – ordenou Renato autoritariamente, valendo-se da prerrogativa de dono do carro.
– Está bem – manifestou-se Daniel, até então calado. Vamos bater papo com os fantasmas!
O homem estava na iminência de pisar na lua; porém, entre a população humilde de Teresópolis, a crença no sobrenatural era reinante. Segunda-feira, dia das almas: acendem-se velas para guiar os espíritos desgarrados à celestial morada. Estranha concepção de almas penadas que, nostálgicas de suas vidas terrenas, rondam os palcos de suas prévias existências!
Quarta-feira, dia das bruxas. Depois que a última lâmpada se apaga, passam a rondar os casebres rústicos dos bairros humildes, à procura de recém-nascidos para raptar – exceto se protegidos por tesoura prateada sob o travesseiro.
Sexta-feira, noite mais perigosa, principalmente sob lua cheia. Nos sítios ermos e silenciosos, faz sua horrenda aparição o lobisomem, lupus ex homine! Nos interiores de nosso Brasil, o lobisomem existe deveras! Pretos velhos quase centenários, pele enrugada como casca de carvalho, cigarro de palha à boca, finda a semana de labuta na enxada, após as cachaças nas perdidas biroscas, desaparecem de vista, só reaparecendo na madrugada de sábado. Onde estiveram, eles próprios não o sabem. É voz corrente que se transformam em lobisomens.
Não era noite de segunda, nem de quarta, nem de sexta: nada havia a temer. A sensação era metafísica (“por que o ser e não, simplesmente, o nada?). Normalmente, adentra-se em um cemitério imbuído de emoção específica e bem-definida: a dor intensa pela desaparição de ente querido, a solidariedade ao amigo que perdeu o pai ou a mãe… Cemitérios, via de regra, não são locais de passeio.
Inicialmente, o tom era de bazófia. Os quatro amigos queriam demonstrar coragem naquela incursão macabra.
– Dizem que, muitos anos atrás, aqui mesmo em Teresópolis, alguém dormindo sentiu, exatamente à meia-noite, algo roçar-lhe os cabelos. Abrindo os olhos, deparou com medonha mão semi-descarnada segurando uma faca. O susto foi tão grande, que, na manhã seguinte, a sua pele estava enrugada e os cabelos totalmente brancos, como se fosse um velho…
– Espero que a mão descarnada não apareça hoje para nós. Olhem as estrelas, tantas e tão distantes! Terão planetas como o nosso, com pessoas como nós a esta hora visitando cemitérios?
– Anécio Brandão… Falecido em 1951. Ano em que nasci.
– Vai ver que a alma dele encarnou em você.
O que mais impressionava aquelas mentes afetadas pela maconha: a profusão de estrelas, cujo brilho era realçado pela ausência de lâmpadas, ou a consciência de que, em algum ponto remoto do futuro, juntar-se-iam aos habitantes do campo santo?
– Estou ficando “careta” – queixou-se Marcos.
– Vamos apertar mais um “baseado”? – sugeriu Afonso.
– Quem é que trouxe “seda”? – perguntou Daniel.
– Serve “seda” de maço de cigarros?
Sentaram-se sobre algum túmulo para a “rodada de fumo”. Inspiraram a fumaça até o fundo dos pulmões, premendo as narinas com os dedos a fim de retê-la ao máximo. Logo, sentiram os fluidos canábicos na corrente sangüínea.
– Bateu, bicho! – exclamou um dos quatro, referindo-se à súbita alteração da consciência provocada pela maconha.
– Podes crer, meu irmão! Estou desbundado…
– Estou despirocado! (Com que pitorescos termos referiam-se ao êxtase causado pela erva maldita!)
– Alguém tem aí uma caneta? – perguntou subitamente Marcos, o intelectual do grupo.
– Para quê?
– Vou escrever um poema.
– Toma – disse Afonso, oferecendo-lhe sua caneta.
– Quem tem papel?
– Escreve no maço de cigarros.
Que estranho poema resultou de reunião tão bizarra? Quantas obras geniais, produtos de devaneios quimicamente induzidos, perderam-se nas latas de lixo de Teresópolis?