Marcos, o iluminado – parte 5

(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
5
VERÃO SEGUINTE EM TERESÓPOLIS
No verão seguinte, o comitê eleitoral do tal candidato derrotado voltou a ocupar o imóvel do museu de cera. Os monstros do trem-fantasma já não amedrontavam como no ano anterior, e o pano invisível, em vez de assustar, fazia rir. As pulgas do São Miguel haviam se transferido para outra freguesia, depois que o proprietário, movido por incontáveis reclamações, mandou dedetizar a casa. A transformação da mulher em macaco perdeu a graça, com a revelação de um jornalista de se tratar de engenhoso jogo de espelhos. E o circo entrou em decadência, depois que o domador de leões, cansado de “comer” o palhaço, fugiu com a mulher do trapezista. Quanto às revistinhas de sacanagem, a mãe de Renato topara, numa faxina, com o seu esconderijo e as jogara todas ao fogo, não sem antes encenar escândalo digno de tragédia grega.
Depois de tentar em vão atrair o filho para um estágio no Tribunal da Justiça e temeroso de que, no Rio de Janeiro, por falta do que fazer, acabaria passando o dia no “píer” de Ipanema fumando maconha com más companhias, o pai de Marcos resolveu alugar uma casa em Teresópolis e convidar o amiguinho Afonso para passar as férias com eles. O pai subia a serra nas quintas-feiras de noite, retornando ao Rio nas segundas de madrugada. Marcos e Afonso, porém, não permaneciam sozinhos; cozinhava e arrumava a casa uma velha empregada, trabalhando para a família desde o tempo em que a mãe de Marcos era viva.
Transportemo-nos para uma tarde chuvosa de terça-feira, duas semanas depois de iniciadas as férias. As notícias do Rio de Janeiro eram desoladoras: chovia muito e os técnicos da SURSAN previam desmoronamentos de encostas. O frenesi pré-natalino não contagiara os quatro rapazes, talvez por estarem na idade de contestar, e não de aderir. Jogavam animada partida de pôquer a um cacife barato para matar o tempo. Renato mostrava-se visivelmente irritado: já perdera o primeiro cacife e estava na iminência de perder o segundo. Parecia perseguido pela urucubaca. Já na terceira rodada, tendo recebido quatro cartas de espadas, resolvera tentar o flush. Devolveu a dama de paus destoante e qual não foi sua surpresa ao ser agraciado com a carta de espadas faltante! Começou apostando timidamente, para os adversários não desconfiarem. Debalde: Afonso e Marcos logo caíram fora. Daniel, entretanto, persistia. Renato apostava dez, Daniel dobrava a aposta. “Deve estar com four e pensando que tenho full hand”, imaginou Renato, não despregando os olhos da montanha de fichas sobre a mesa que engrossaria o seu patrimônio. Mas seus planos não se concretizaram: Daniel possuía royal straight flush (que, no Brasil, se pronuncia erradamente como royal street flash), combinação de seqüência com flush tão improvável, que, nos filmes de faroeste, resulta em tiroteio. Naquela tarde cinzenta, o destino parecia empenhado em perseguir Renato. Duas rodadas depois do desastre, foi brindado com four. “Agora vou à forra”, pensou. Qual o quê: apostava dez, Daniel dobrava. Outras vinte, Daniel revidava com “suas vinte mais trinta”. Empenhada uma terça parte do capital, o medo falou mais alto. “Melhor perder uma parte a perder tudo”, raciocinou. E abandonou a rodada, presenteando Daniel com outra vitória.
Provocadoramente, Daniel atirou suas cinco cartas sobre a mesa, faces para cima. Havia blefado, não possuindo sequer uma dupla. “Seu cagão”, xingou Renato com despeito. “Cagão nada, sei jogar”, alfinetou Daniel. Lá fora, a chuva não esboçava trégua. Às vésperas da rodada de fogo, Renato subitamente reagiu:
– Como é que é, moçada? Vamos ficar a tarde toda sentados aqui igual babacas, jogando esta merda de jogo?
– Você fala assim porque está perdendo! – respondeu Daniel, que gostaria de ver o jogo prolongado pelo resto da eternidade. Renato se exaltou:
– Porque estou perdendo porra nenhuma! Um dia é da caça, outro dia, do caçador. Negócio é o seguinte: já estamos há duas semanas nesta terra onde só cai chuva e, até hoje, nenhum de nós comeu uma mulher!
– Como é que você sabe? Colocou um detetive atrás de nós? ‹ provocou Daniel.
– Quem de nós comeu uma mulher depois que chegou em Teresópolis levante o braço!
Como ninguém esboçasse reação, Renato prosseguiu vitorioso:
– Está vendo? Está todo mundo a perigo! Negócio é o seguinte: vocês querem continuar o jogo ou sair para paquerar?
Daniel “Maracanã”, por razões óbvias, preferiria continuar a jogatina.
Os outros ficaram divididos entre as indecisões sexuais e amorosas e a curiosidade. Um lado de Afonso optaria por continuar jogando, não porque fosse viciado no carteado, mas porque ainda não solucionara algumas perplexidades decorrentes de sua iniciação sexual em um puteiro de Copacabana (conforme o leitor constatará adiante neste livro). Quanto a Marcos “Quatro Olhos”, romântico inveterado, sonhava com a garota que “comigo viaje pela Nona de Beethoven, que compreenda não ser tão vã assim minha vã filosofia” (ultimamente, dera para escrever poesias), fugindo do amor vulgar de becos e kitchenettes. Em escrutínio secreto, talvez vencesse o jogo, para azar das mulheres. No entanto, na votação por aclamação, nenhum dos três amigos quis parecer “babaca”:
– Boa! Já estou duas semanas na mão! (Na verdade, estava quase três meses).
– Está se vendo! A mão está até inchada!
Havia um outro elemento em jogo. Renato, dono de tremenda lábia, nas noites iluminadas por luz de vela (naquela época, lembram-se?, faltava luz com freqüência em Teresópolis), após ter contado pela enésima vez a piada da mãe que levou uma machadada bem na boceta e dos condenados na piscina de merda do inferno, punha-se a narrar as suas proezas sexuais (imaginárias?) no Rio de Janeiro: a precoce conquista de ninguém mais, ninguém menos do que a professora do admissão, a “empregadinha” que comera dentro de um cinema, a outra “comida” bem na cama de papai e mamãe, durante uma viagem deles (que material para uma sessão psicanalítica!), e a coleguinha que segurara seu “pau” em plena sala de aula… Os crédulos amigos de Renato sentiam-se algo inferiorizados ante tamanho poder de sedução. Porém, nunca o deixavam transparecer, inventando, por sua vez, rol igualmente rico de conquistas e aventuras. Na verdade, tanto Daniel, o mais afoito, como Marcos, o mais tímido, e Afonso, o mais problemático, nunca haviam transcendido a esfera do amor por dinheiro dos rendez-vous. Sem meias palavras: nunca haviam comido uma mulher de graça! Indo mais longe: sequer tinham idéia de como lográ-lo. Em linguagem técnica: faltava-lhes o know-how. Com coleguinhas do colégio e amiguinhas em geral, nem pensar: eram garotas “direitas” , e não “piranhas”. Uma ou outra tinha pendores para “galinha”, mas não ousavam ultrapassar o domínio dos beijos acalorados. Com empregadas domésticas, tampouco tinham sorte: a da casa de Marcos já era “coroa”; a mãe de Daniel, dona Carmela, dava conta do serviço sozinha… As da casa de Afonso eram as melhores: dona Isaura só contratava as de boa aparência. Os colegas davam uma força: “Aquela sua empregada é um tesão. Você não vai dar em cima dela?” Afonso saía, invariavelmente, pela tangente: “Bem que tenho tentado, mas mamãe está sempre de olho”. Conclusão: os três amigos estavam curiosos em aprender com Renato a fórmula de seu (pretenso) poder de sedução.
Aproveitando uma trégua da chuva, lá se foi a caravana de Don Juans à procura da presa, tomando a direção da rua principal. A chuva enchera as ruas de lama, cenário nada romântico para aventuras amorosas. Renato, como bom líder, seguia à frente, enfiado em sua capa de chuva impermeável e contando vantagens, para animar seus aprendizes:
– Ano passado, mais ou menos nesta época, ganhei uma moreninha esperando ônibus neste ponto.
Naquela tarde chuvosa, porém, o ponto de ônibus permanecia vazio, as moreninhas decerto não querendo se molhar. Daniel vinha contrariado com a interrupção prematura da partida de pôquer e computava mentalmente o dinheiro adicional que deixara de faturar. Algumas braças atrás, Marcos e Afonso mostravam-se indiferentes às qualidades da morena de jambo de um ano atrás: o primeiro, absorto em elucubrações românticas de se na boate do próximo sábado alguma garota lhe daria “ponto” e o segundo, desconfiado das bazófias de Renato, temendo acabarem conduzidos a lupanar qualquer de quinta categoria. Ao passarem por um bar, Renato sugeriu:
– Vamos tomar umas e outras para esquentar! – e se meteu pela espelunca a dentro, seguido pelos demais, como soldados seguindo o oficial. O chão, coberto de guimbas e escarros, causou asco a Afonso, que se calou, não querendo desempenhar o papel de desmancha-prazeres. “É só não olhar para baixo”, pensou. Àquela hora da tarde, os freqüentadores vespertinos do bar ainda não haviam se desvencilhado da labuta, com exceção de matuto de idade indefinida, chapéu de palha, dentes cariados, alguns faltando, fumando daquele “mata-ratos” que matou o guarda da esquina, e que, como todo bom brasileiro, vangloriava-se de suas trapaças, diante de seu Joaquim (ou seria seu Manoel?), o lusitano dono do bar, que não lhe dava ouvidos. Vendo o bar subitamente invadido pelos quatro jovens, rejubilou-se com a nova platéia e, a voz engrolada, abordou-os sem timidez:
– Gente boa, a primeira rodada é por minha conta! Ou melhor, por conta do INPS ‹ e deu a risadinha dos espertos.
Seu Manoel (ou seria seu Joaquim?), temendo que o matuto bêbado espantasse os novos fregueses, tentou convencê-lo a encerrar a quota do dia:
– O senhor não acha que já tomou o bastante por hoje? Não é melhor pagar a conta e voltar para casa? Conhece o ditado: cu de bêbado não tem dono? ‹ soltou uma risadinha e atendeu os quatro rapazes
– Boa tarde! Os senhores vão querer o quê? Cafezinho bem quentinho?
Contudo, o alcoólatra não deu o braço a torcer. (“Engraçados os brasileiros”, refletiu o português. “Acham-se tão espertos e vivem na merda.” De seis da madrugada até oito, nove da noite atrás do balcão, acostumara-se a ouvir mecânicos vangloriarem-se de terem cobrado uma fortuna por uma simples troca de velas, borracheiros, de terem vendido pneus recauchutados por novos, de farmacêuticos, de prescreverem o remédio mais caro em lugar do mais eficaz. “Tanta esperteza, mas todos bebem, têm esposas em frangalhos, filhos cronicamente encatarrados e dentes estragados…”)
– Eu já disse que a primeira rodada é por conta do INPS! Seu portuga, quatro “dudus” para meus amigos!
Seu Joaquim (ou seria seu Manoel?) desistiu de expulsar o importuno:
– São quatro Undenberg com Dubar?
Com a rapidez do mocinho que saca o revólver diante do bandido, Renato fulminou:
– Isso mesmo! Quatro “dudu”, por conta do amigo aí!
Afonso procurava fixar o olhar nas prateleiras repletas das mais ordinárias aguardentes, com o espelho de fundo quase sem reflexo de tão oxidado, a papeleta ao lado avisando que “fiado só amanhã”. Entretanto, a visão involuntariamente resvalava para as placas de saliva no chão, engrossadas por cusparadas intermitentes do matuto.
– A rodada é por conta do INPS – o matuto repetiu pela terceira vez, como se os seus interlocutores fossem seres destituídos de memória.
– Sabem por quanto tempo estou “encostado”? – Não esperou pela resposta. – Meio ano! – E, enquanto os quatro efebos entornavam goela abaixo a beberagem, não sem antes pingarem no chão a dose ‘do santo’, o matuto avesso ao dentista narrou empolgado como enganara, reiteradas vezes, a junta de doutores que o periciara no INPS, fazendo-se passar por alienado. Mais de uma vez, Renato procurou interromper a digressão desconexa do matuto que se julgava o mais esperto do mundo:
– Esta birita está uma brasa! Mais uma rodada?
O matuto fazia questão de pagar também a segunda rodada, igualmente por conta do INPS. E contava novas histórias de filas de madrugada que conseguira furar e remédios fornecidos pelo psiquiatra que jogara na lata de lixo… A certa altura, impaciente com o palavrório, Renato deu o basta:
– Aí, moçada, está quase na hora de fechar o comércio. Vamos ver se ganhamos alguma balconista! Movidos por reflexo condicionado, os quatro amigos se levantaram e abandonaram o bar, deixando a conta para o matuto (por conta do INPS!) e para o seu Manoel (ou seria seu Joaquim?) a triste incumbência de continuar escutando as bravatas do bêbado:
– Pois é, aí chegou o doutor, com a seringa na mão, e…
Atingida a rua principal, deram-se conta de que, com a proximidade do Natal, o comércio fechava uma hora mais tarde. Com o recrudescimento da chuva, decidiram “fazer hora” num bar recém-inaugurado, imitação do Bip Bip do Rio de Janeiro, servindo quase cinqüenta variedades de batidas preparadas com rum, em lugar da tradicional cachaça. Renato pediu a convencional batida de limão; Daniel, para ser original, preferiu graviola; Afonso, ainda sob o trauma da barata cascuda que lhe cruzara o caminho à saída do bar, escolheu maracujá para se acalmar; e Marcos, que “curtia” a sensação de vertigem provocada pelo álcool, foi de batida de coco, “bem caprichada, com mais rum do que suco”. Enquanto as bebidas iam sendo preparadas no liqüidificador, os quatro aventureiros escrutavam a rua defronte, aves de rapina à caça da presa. A chuva fina desencorajava as pessoas de saírem à rua. Garota de pulôver de lã, carregando um embrulho em papel de presente, passou apressadamente em frente ao bar, sem dar ouvidos aos assobios e apupos dos quatro galãs:
– Vem cá, benzinho! Vem tomar uma batida para esquentar!
– Você já tem programa para hoje à noite?
A frustração pela indiferença da garota de pulôver logo cedeu lugar à exaltação dos brindes:
– Um brinde ao mulherio de Teresópolis!
– Permaneçamos firmes e fortes, de boa saúde e de pau duro!
– Às boas coisas da vida: comer, cagar, dormir e foder!
Aos brindes, sucederam-se os planos: sábado próximo, na boate, iriam “destruir”; aos planos, as lembranças, terra de ninguém onde se mesclavam realidade com fantasia: “será que a “mina”que me deu ponto na boate semana passada vai estar lá de novo?”; às lembranças, as piadas: “sabem qual é o cúmulo da elasticidade? pôr um pé sobre o Pão de Açúcar, o outro sobre o Corcovado e lavar os colhões na baía da Guanabara!”… As saideiras se sucediam umas às outras; quando se deram conta do horário, as lojistas que pretendiam paquerar já se achavam no recôndito de seus lares, defronte às televisões. Os quatro dom quixotes, com o córtex cerebral entorpecido pelo álcool, não desistiram de perseguir suas dulcinéias. Pagaram a conta a contragosto, após infrutífera discussão em torno da quantidade de batidas consumidas. Daniel não poupou invectivas conta a “roubalheira” do bar, que cobrava dois cruzeiros pela batida quando a dúzia de limões na feira não ultrapassava os cinqüenta centavos.
Escurecera e a temperatura caíra drasticamente. Todavia, as generosas libações alcoólicas, se, por um lado, davam a falsa sensação de que um novo movimento terrestre se agregara à rotação e translação, por outro lado, atuavam como agasalho, amortecendo o frio. Casaco de pobre é cachaça! A impressão de se encontrar a cidade sob toque de recolher (tão vazia estava a rua!) foi quebrada pela aparição de matrona de meia idade com ares de estrangeira. Renato, a quem o efeito da bebida impedia de discernir gato de lebre, abordou a respeitável senhora, com a voz grogue:
– Benzinho, vem cá, vamos fazer um filhinho!
Para surpresa do desbocado fedelho, a valquíria investiu contra ele, guarda-chuva à mão, cobrindo-o de bordoadas:
– Seu “espírrito” de “porrco”! (Pronunciava um “r” carregado como no alemão.) Da próxima vez, chamarei a polícia. – E, com a mesma rapidez com que atacara o sem-vergonha, saiu de cena e desapareceu na escuridão.
O ataque inusitado trouxe os quatro cavaleiros andantes de volta à fria realidade: achavam-se na ingrata idade em que as meninas mais novas ainda eram “pirralhas”, enquanto as de mesma idade (para não falar nas mais velhas) preferiam rapazes mais maduros, motorizados e bem-vestidos… Renato, entretanto, não deixaria por menos: recentemente, conhecera na praia três mineiras de Itajubá que passavam as férias em Copacabana, e não se perdoava por ainda não lhes ter apresentado os amigos.
– Onde será que guardei o endereço das mineiras?