(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
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COMO O DIABO GOSTA
– Onde será que guardei o endereço das mineiras? Vamos na casa delas, que, se nós insistirmos, elas acabarão “dando”. Não existe virgem convicta, existe mulher “mal cantada”.
Daniel procurou convencê-lo da inconveniência de descerem para o Rio de Janeiro àquela hora, atrás de umas mineiras cujo endereço exato Renato sequer conhecia.
– É na Duvivier, num prédio perto da praia. A gente vai perguntando para os porteiros… – respondeu o trôpego Renato.
– Até chegarmos no ponto, esperarmos o próximo ônibus, chegarmos na rodoviária do Rio e atingirmos Copacabana, as mineiras já estarão no sétimo sono.
Renato mostrava-se irredutível:
– Está bem, se não querem vir comigo, irei sozinho – e fez menção de concretizar a ameaça. A viagem ao Rio, contudo, não foi além dos primeiros dez passos. Em seu andar cambaleante, Renato não contou com um poste interposto em seu trajeto, ao qual foi de encontro, abraçando-o. De repente, o estômago se rebelou contra a indigesta mistura de suco gástrico, Undenberg, conhaque vagabundo e rum… Renato começou a vomitar sobre o poste, com um barulho como se estivesse expulsando um demônio do corpo. A cada golfada da gosma repelente, outra ainda maior se seguia, dando a impressão de que Renato acabaria por expelir as próprias entranhas. Seus sapatos imergiram naquela substância nojenta, produto da digestão abortada. A roupa logo se viu salpicada do fedorento coquetel do inferno. Em meio aos líquidos alcoólicos, fragmentos dos biscoitos comidos durante o jogo de pôquer faziam-se discernir. À revolução do estômago contrariado, logo se seguiu a rebelião do espírito. Renato, numa enxurrada de lágrimas, pôs-se a lamentar:
– Perdi o endereço das mineiras! Vou ter de procurá-las na praia, como agulha no palheiro!
De súbito, começou a estertorar:
– Meu Deus, estou ficando sem ar! A bebida atingiu o sistema respiratório! Vou morrer! Vou morrer!
Conclusão: o que se prenunciava como epopéia de intrépidas conquistas amorosas acabou se transfigurando em patética peregrinação ao hospital municipal, sendo preciso dose dupla de soro na veia para resgatar Renato da coma alcoólica de volta à fantasia. Perdão, realidade.
Contrariando o prognóstico da meteorologia, o dia seguinte amanheceu claro, as poucas nuvens felpudas não impedindo o sol de aquecer a cidade. Passarinhos festejavam a mudança do tempo; a vegetação, depois de duas semanas de chuvas, exuberava de vida. Marcos acordou feliz. Naquele dia, escreveu no diário:
Há dias em que acordo feliz. Feliz por ver um dia bonito com um sol bonito. Feliz por algo que não sei bem o que é. Hoje acordei satisfeito. Quero amar o mundo na certeza de que minhas emoções não são frutos de meras reações químicas, mas de um princípio superior ao rodopio dos átomos: uma alma!
Renato sentia-se alquebrado, como se tivesse retornado da guerra. Iniciado o festival de vômito e lágrimas, só recobrara a consciência horas depois, ao raiar da madrugada, num leito do hospital municipal. O último ônibus para as suas bandas tendo partido à meia-noite, viu-se obrigado a dormir em casa de Marcos. Regulou o despertador para seis da manhã, a fim de retornar cedo à sua casa e não preocupar a mãe. A estridente campainha soou em seus ouvidos como trombetas do Juízo Final: resíduos de álcool na corrente sangüínea mantinham Renato em estado de tontura; o estômago queimava de acidez; cheiro imaginário de cachaça o nauseava; o menor movimento intensificava a dor dentro do crânio. Precisava urgente de uma aspirina! O pensamento de que a farmácia só abriria uma hora depois agiu como um soco. Rezou, tentando aliviar o padecimento: Shemá Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Ehat. Triste conclusão: Deus não possuía vocação para enfermeiro. “Juro por Deus nunca mais pôr gota de álcool na boca”: juramento descumprido, conforme constataremos. Foi aos trancos e barrancos que Renato se arrastou até o botequim (por ironia do destino, o mesmo da noite anterior), entornando dois copos de leite gelado com algumas cafiaspirinas (graças a Deus, encontrou-as no bar!). A seguir, enfrentou o ônibus para casa, cada sacolejar como choque elétrico de sessão de tortura. Chegando finalmente em casa, ainda teve de engolir a cantilena da mãe, que passara a noite em claro, preocupadíssima, sem saber se telefonaria para a polícia, o necrotério ou o corpo de bombeiros…
Na noite seguinte, tiveram mais sorte. Com o final da chuva, as garotas em peso afluíram às ruas para as compras de Natal. Depois de animada partida de buraco em casa de Marcos, a qual, por sua localização central, tornara-se ponto de reunião da moçada – Daniel indo à forra pela derrota do dia anterior, com canastra após canastra -, decidiram “ir à luta”. Desta feita, o mar estava piscoso e, o que é mais importante, a rede, sem furos. Se eu contar, vocês não vão acreditar: em frente ao Hygino, vistoso Simca Chambord com duas morenas a bordo freou bruscamente junto aos quatro galãs; a do guidom (“já vi esta mina antes, não sei onde”, pensou Marcos), pernas grossas que a míni-saia deixava à mostra, seios fartos, cabelos e olhos castanhos, manequim 44, digna de figurar como “dica de mulher” no Pasquim; a outra, quase mulata, lábios excessivamente grossos e cabelos alisados com henné. Bailarinas do programa do Chacrinha, haviam sido contratadas para um show, naquela noite, no sítio de um milionário. Sequer eram cinco da tarde, o show só começaria às dez da noite, e as morenas estavam perdidas em Teresópolis, sem dinheiro para hotel e não sabendo onde pousar. Marcos jogou verde para colher maduro, convidando-as para a sua casa, sem grandes esperanças de que aceitassem o convite: “o que uns mulheraços como estes vão querer com quatro fodidos?” Só que, dessa vez, o tiro acertou na mosca: a mulher para quatrocentos talheres aceitou o convite. Os quatro galantes passaram o final de tarde como o diabo gosta: resquícios de timidez foram exorcizados pelo uísque escocês surrupiado ao pai de Marcos (crime perfeito: no dia seguinte, substituíram a bebida faltante pelo equivalente nacional, comprado na mercearia). As chacretes eram safadas: logo, puseram-se a reclamar do calor e a desabotoar as camisas. Os quatro garbosos mancebos ficaram indecisos entre desabotoarem as camisas, descalçarem os sapatos, abrirem as braguilhas (com mulher de zona, é tudo mais fácil!). Em vão, o romântico Marcos (que removera os óculos para parecer mais bonito), o delicado Afonso e o intrépido Daniel “Maracanã” esperaram de Renato, o terror do mulherio, alguma iniciativa, um sinal de como procederem. Enquanto as morenas sôfregas desamarravam os sutiãs, pernas displicentemente abertas, calcinhas à mostra e culpando o calor pelo strip-tease (felizmente, a empregada estava de folga), Renato contava alguma pilhéria sem a menor graça naquele contexto, Afonso roia as unhas e Marcos, nervoso, coçava o saco. Foi preciso Daniel solucionar o impasse, perguntando ao morenaço se gostaria de ver a casa (que pergunta pequeno-burguesa!). Ela respondeu que sim, sorriso malicioso nos lábios e, puxando Daniel pela mão, conduziu-o escada acima para o sótão, sob os olhares atônitos dos companheiros. A quase-mulata de lábios grossos, não querendo ficar para trás, tratou de arrastar Marcos até o quarto. Enquanto os dois casais fodiam a foda dos justos, Renato, muito sem graça, disfarçava o desapontamento fazendo algum comentário imbecil a Afonso, a quem não restavam mais unhas para roer (a não ser que começasse a roer as do pé). Depois de algum tempo, o democrático Marcos assomou à porta:
– O próximo, quem será? – e, enquanto Daniel testava com a fogosa artista de televisão as posições e carícias ensinadas pelo Kama Sutra, Marcos, Afonso e Renato (nesta ordem) revezaram-se com a mulatinha. De quebra, foram todos convidados para a festa na fazenda do milionário. No final da noite, Marcos ainda encontrou inspiração para fumar cigarrinho de maconha. Tocou na vitrola o segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven e escreveu no diário:
Que de mais belo haverá do que relação entre dois corpos? Interpenetração radical entre dois diferentes universos!
As duas ninfomaníacas, por sua vez, comentaram entre si:
– Sua sortuda: ficou com três e me deixou só com um!
– Só que do meu mato não saiu coelho: o primeiro, levou tanto tempo me alisando, que acabou gozando antes de foder; o segundo, de tão bêbado, o pau não subiu; o terceiro, pode até ser bom de cama, mas tem mau hálito.
– Então, fui premiada: você tinha de ver o tamanho do pau de meu garotão!
Na quinta-feira, com a chegada do pai de Marcos em Teresópolis, como de hábito, as pândegas sofreram uma trégua de três dias, substituídas por programas mais edificantes: o boliche, o Parque Nacional, o ngelo, a Taberna Alpina. Sábado de noite, a boate do Hygino.
Através do pai, Marcos “Quatro Olhos” ficou sabendo que um casal de amigos subiria sexta-feira com a filha para Teresópolis. “Por que você não faz uma visitinha à Sônia?”, sugeriu o pai. “Tem mais ou menos a sua idade, é bonitinha e, quem sabe, terá outras amigas para apresentar?” Rosto salpicado de pequenas sardas que, longe de enfeá-lo, imprimiam-lhe um frescor de puberdade, cabelos pretos e lisos com uma franjinha sobre a testa, vestidinhos coloridos conforme a moda, Sônia tornou-se alvo dos planos de Marcos. Convidá-la-ia para a boate, beberiam uma cuba libre, para se desinibirem, começariam dançando separados, para não pegar mal (estavam em voga: Hermann Hermits, The Byrds, The Guess Who, The Monkies, The Beatles…), tomariam segunda cuba libre, para se animarem, Marcos a convidaria para dançarem as músicas lentas, gradativamente iria se encostando nela, sondando a reação… Escreveu no diário:
Amanhã de noite, acontecerá algo de novo em minha vida.
Entretanto, como no conto de Andersen da menina com o cesto de ovos, a realidade não correspondeu à expectativa. Sônia reagiu negativamente ao convite de Marcos: boliche, barzinho, boate… ela teria o resto do ano no Rio de Janeiro para esse tipo de programa; durante sua estada em Teresópolis, preferiria o contacto com a natureza, a atualização das leituras, os exercícios no violoncelo… Prezado leitor, a menina Sônia, não contente em dedilhar as cordas do violão, como tantos outros jovens, cismara em aprender o violoncelo, de som soturno e enjoativo, no parecer dos amigos. Contrariado, Marcos resolveu “dar banana” para Sônia. Na boate, arranjaria outra bem superior. Antes, passaram pelo bar das cinqüenta batidas, por sugestão de Renato: “sai mais barato biritar aqui fora do que na boate”, justificou, refeito do porre homérico da terça-feira e pronto para outro, não obstante a promessa em contrário.
Naquele início de verão, a boate inaugurava moderno sistema, importado dos Estados Unidos, de iluminação com luz negra, cujos raios ultravioletas transformavam todos em galãs bronzeados de praia e faziam os dentes e camisas brancas resplandecerem. Marcos, espírito de conquistador, destacou-se dos amigos, observando, de um canto, as garotas desacompanhadas. “Quase só tem minhoca”, pensou. Depois de espreitar por alguns minutos, despertou-lhe a atenção ninfeta de olhar lânguido, cabelos lisos, claros e compridos, cintura fina. O coração bateu em compasso mais forte. Reteve-o a dúvida entre convidá-la para dançarem as músicas rápidas tocadas naquele momento ou aguardar pelas músicas lentas. Custou-lhe caro a indecisão: algum gaiato chamou a menina para dançar. “Filha da puta”, xingou mentalmente. A alegria do rival foi efêmera: mal chegou ao fim a frenética canção dos Hermann Hermits, a garota agradeceu educadamente e se separaram. Como que adivinhando as intenções de Marcos, o discotecário atacou de “The Sounds of Silence” , música do filme A Primeira Noite de um Homem (tradução nada literal de The Graduate). Marcos assistira ao filme duas vezes: o retorno de Ben para Elaine fizera-o derramar furtivas lágrimas.
– Gostaria de dançar comigo? – convidou e, sem esperar pela reação da garota, levou-a até a pista, enlaçou-lhe a cintura com o braço direito e, braço esquerdo sobre o seu ombro, passou a conduzi-la dois passos para lá e dois passos para cá, com um ou outro ligeiro rodopio para mostrar quão bem dançava. E lhe formulou as perguntas de praxe, qual o seu nome, Dóris, respondeu a garota, estava em Teresópolis havia quanto tempo, cheguei ontem, respondeu, aceitaria uma cuba libre, prefiro coca pura, respondeu Dóris e, conversa vai, conversa vem, Marcos acabou se dando bem, marcando um encontro às três da tarde do dia seguinte na Taberna Alpina, ousando até um roçar de línguas na despedida, que já era tarde e os pais de Dóris não gostavam que ela chegasse em casa depois da meia-noite… Somente então, Marcos notou o estado etílico em que Renato se encontrava, bêbado a ponto de convidar um homem para dançar.
– Não leve a mal, ele está de porre – explicou Marcos, pedindo ajuda a Daniel e Afonso a fim de carregarem Renato para fora, antes que se envolvesse em confusão. Mais uma vez, o nada abstêmio amigo teve de dormir no sofá da casa de Marcos, dado haver perdido o ônibus da meia-noite. Desta feita, seus pais haviam sido avisados para não se preocuparem. Antes de dormir, sozinho no quarto, Marcos fumou um baseadinho.
Enquanto Marcos era bafejado pela musa, Renato pelejava tenazmente contra as próprias pálpebras. Em vão, fechava os olhos, ansioso pelo sono reparador: automaticamente, abriam-se novamente. A melodia dos Hermann Hermits, várias vezes tocada na boate, reverberava incessantemente em sua cabeça, como se o disco estivesse encravado no cérebro: There’s a kind of hush, larara, all over the world, tonight… Durante um tempo que lhe pareceu interminável, Renato batalhou contra o efeito psicotrópico dos três comprimidos moderadores de apetite subtraídos à mãe que, aliados ao álcool, tão eufórico o deixaram durante a noitada na boate mas agora o impediam de dormir.
A manhã de domingo encontrou Marcos cheio de expectativas. O sol em céu de azul cinematográfico com nuvens quase imperceptíveis convidava para um banho na cascata dos Amores. Entretanto, pretextando dor de cabeça “por causa das batidas de ontem”, Marcos desvencilhou-se dos amigos. Precisava preparar-se espiritualmente para o encontro das três da tarde na taberna: reler um e outro trecho literário, anotar no diário pensamentos ainda frescos, beber da fonte de seu Beethoven e (às escondidas dos amigos) queimar o seu fuminho.
– Só porque se deu bem com aquele palito que mal tem quadris, o “Quatro Olhos” está todo “cartoso”.
– Ele vai ver o que é bom; vamos dar um “gelo” nele.
Contudo, os exercícios espirituais não surtiram sobre Marcos o efeito desejado: a definição platônica do amor, leitura por tanto tempo adiada, desagradou-lhe; máximas alinhavadas no diário que, a uma primeira leitura, pareciam rivalizar com as de La Rochefoucauld, a uma segunda leitura revelaram-se triviais e sem imaginação; Beethoven afigurava-se insosso, em contraste com a batida dos Bee Gees; e a própria maconha, em lugar de aumentar-lhe a coragem, intensificou a tensão. Pensou em convocar os amigos para “darem uma força”; porém, faltando pouco para duas da tarde, ainda não haviam retornado da Cascata dos Amores. Cogitou em tomar batida de maracujá para tranqüilizar os nervos, mas temeu que Dóris lhe sentisse o “bafo”. Quase subjugado por um círculo vicioso de pensamentos, subitamente reagiu e, como o poeta Pessoa, semiergueu-se enérgico (mas sem tencionar escrever quaisquer versos) e bradou de si para si: “Alea jacta est! Sou um homem ou um rato? Se esperar mais cem anos, Dóris poderá ter morrido! Preciso aproveitar enquanto posso!” E, intrépido, percorreu de bicicleta o caminho a separá-lo da felicidade. Chegando à Taberna Alpina, decidiu esperar do lado de fora, os braços cruzados para disfarçar a falta do que fazer com as mãos.