Marcos, o iluminado – parte 7

(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
7
1969
Chegando à Taberna Alpina, decidiu esperar do lado de fora, os braços cruzados para disfarçar a falta do que fazer com as mãos. Em vão esperou até mais de seis e meia. Dóris não deu sinal de sua graça.
Naquela noite, escreveu no diário páginas eivadas de fel: No silêncio da noite, a angústia me ataca, impedindo-me de dormir. A solidão é tão grande: sinto vontade de beber. Beber sem parar. Entrar em coma alcoólica. Encher a cara de Librium e parar no hospital: tentativa de suicídio. Chorar. Qualquer coisa é melhor do que rolar pela cama, no escuro, no silêncio, e pensar, pensar, pensar…
A TERÇA-FEIRA SEGUINTE foi véspera de Natal.
O Judiciário entrou em recesso e o pai de Marcos decidiu ficar em Teresópolis até o Ano Novo.
Afonso, por sua vez, desceu ao Rio na segunda-feira, a fim de passar o período de festas com os pais. Entretanto, prometeu voltar antes do réveillon.
Daniel, como de hábito, depois que os pais se separaram, passaria o Natal com a mãe, dona Carmela. No dia 24, ela não desgrudou da cozinha, preparando rabanadas, lombo com farofa, panetone e outros quitutes. A convidada de honra foi Rita, filha dos caseiros de um sítio próximo, menina pacata e de bom coração, olhos buliçosos, tranças à Maria Chiquinha, cujo sonho era se tornar professora de grupo escolar e que costumava ajudar dona Carmela nas tarefas domésticas, em troca de peça de roupa usada, quilo de algum mantimento ou alguns cruzeirinhos. Cabe aqui uma revelação: Daniel e Rita namoravam em segredo. Rita, por temor ao pai, homem rude, alcoólatra, para quem “filha minha tem de ajudar a mãe na cozinha, e namoricos só quando for de maior…”. Daniel, por vergonha dos amigos, que transformariam garota tão humilde em objeto de sarcasmo.
Em plena terça-feira, Renato ainda não decidira com quem passaria o Natal (seus pais eram judeus). Inicialmente, havia combinado com Marcos passar em sua casa. Entretanto, na última hora, este inventou desculpa qualquer, que pretendia acompanhar o pai à missa do galo, sugerindo a Renato que visitasse Daniel, “para não deixá-lo sozinho, coitado”. No fundo, a sugestão tinha razão bem diversa: recentemente, o pai de Marcos impressionara-se com o alerta, por audaz homem de ouro da gloriosa polícia carioca, em pleno programa Flávio Cavalcânti (um minuto para os nossos comerciais!), contra o perigo insidioso das drogas, que ameaçavam a juventude brasileira. Brandindo o seu livro de ouro, o policial de ilibada reputação arrecadava fundos para um sanatório de recuperação de toxicômanos. Na primeira oportunidade em que se viu a sós com o filho, o pai de Marcos fez-lhe dramático apelo para que se acautelasse contra os tais “tóchicos”, pois “rapaz como você, de boa família e com chance de estudar e de ser alguém na vida, não tem necessidade de ficar fumando cocaína e cheirando maconha” (sic). Recomendou-lhe “fugir das más companhias como o diabo foge da cruz”. Citou, como exemplo, “aquele tal do Renato”, que, consoante comentários, havia sido proibido de ingressar na Taberna Alpina devido a umas bermudas rasgadas que gostava de trajar no verão. Desconfiavam essas mesmas fontes de que Renato fosse maconheiro: alguém o havia flagrado, em noite recente, na boate do Hygino, completamente fora de si, chegando a convidar um rapaz para dançar! “Venhamos e convenhamos, isso não é efeito de bebida alcoólica!” Agravando ainda mais a situação, o desbocado rapaz dera para cantarolar, em voz bem alta, por onde passasse, paródia da bela canção natalina Jingle Bells, em total desrespeito à data magna da Cristandade (também, pudera, filho de judeus…): “Jingle Bell, Acabou o papel, Não faz mal, Limpa com jornal…”
Daniel não contava com a inoportuna visita de Renato; havia convidado a Rita e não queria que os amigos soubessem do namoro. “Como faço para me livrar do Renato?”, pensou, e acabou inventando desculpa ainda mais esfarrapada do que a de Marcos: infelizmente, a mãe andava meia gripada e pedira ao filho que não trouxesse visitas, a fim de evitar o excesso de esforço. Moral da história: o impagável Renato “Piroca”, terror do mulherio desamparado e maior contador de piadas do universo, acabou passando a véspera de Natal dentro de casa, com papai e mamãe, assistindo ao show de Roberto Carlos na televisão.
Eis que o ano de 1968 chegava ao fim (“como passa rápido o tempo!”). O novo ano que batia à porta tornara-se objeto de chacotas: 69, em jargão de gentinha do meretrício, denota a indecorosa posição sexual, própria de casais depravados, que alia simultaneamente a felação à cunilíngua. No trigésimo dia do mês, que caiu na segunda-feira depois do Natal, celebrou-se, em caricata solenidade, a fundação da VAT 69 (alusão a famosa marca de uísque), ou seja, VANGUARDA ALCOÓLICA TERESOPOLITANA DE 1969! O ato pomposo teve lugar à meia-noite (felizmente, não chovia; ao longe, lobisomens uivavam) em erma e sinistra encruzilhada, freqüentada por funestos quimbandistas. Os participantes da sombria assembléia (argh!) carregavam grossos círios de cores tétricas. A zombeteira sessão foi aberta por Renato (quem mais poderia ser?), que procedeu à leitura de medonha fórmula de invocação do diabo do livro de São Cipriano. Não obstante a eloqüência do demonista, a horripilante criatura não deu o ar de sua graça. Monstrum horrendum, informe, ingens. Todavia, o principal orador da noite foi o Giló, campônio rústico, capaz de deixar perplexo o mais atilado dos psiquiatras, que não saberia discernir tratar-se de caso de idiotia, imbecilidade, debilidade mental ou mera burrice. “Comedor” (no mau sentido) de mulas e de toda espécie de gado fêmea com que topasse nas andanças pelos matos, o bizarro orador deu início à peroração com eloqüente panegírico às vantagens das mulas sobre as mulheres. “Já viram alguma mula com ciúmes da égua?”, “Já ouviram alguma mula dizer que hoje não pode porque está de paquete?”, “Já viram mula pedir dinheiro para as compras?”, perguntava à egrégia platéia (composta dos quatro rapazes mais alguns moleques da região), que se desmanchava em gargalhadas. As risadas de Marcos sobressaíam-se: apesar da admoestação paterna, havia fumado roliço e bem servido cigarro de maconha, repleto de sementinhas que explodiam fazendo “ploc”. (Fim de ano, há que comemorar!) Giló prosseguiu a apologia aos muares, com rasgos de humor ingênuo: “Já ouviram mula dizer que agora não, só depois do casamento, ou devagar, só a cabecinha?” A reunião foi coroada com a “cachacinha da paz”, que circulou de boca em boca, augurando-se sucesso à recém-criada agremiação, a VAT 69!
Enquanto os quatro amigos saudavam a passagem de ano com a irreverência própria dos moços, as gerações mais velhas resvalavam nos surrados lugares-comuns: “Mais um ano que passou”, ou “Este ano passou rápido”, ou “Que no novo ano todos os seus desejos se realizem”. Revistas ilustradas traziam retrospectivas do ano recém-encerrado: assassinato, em abril, do pastor Martin Luther King, líder do movimento pela igualdade civil dos negros norte-americanos; assassinato, apenas dois meses depois, do candidato à indicação democrata para a presidência da república, Robert Kennedy (“Querem prova maior de que a política americana é manipulada e de que a democracia é só para inglês ver?”, argumentava Daniel, que não morria de amores pelos “irmãos do norte”. “Como pode se dizer democrática uma nação com milhões de desempregados, de sem-teto, de marginalizados? Já na União Soviética…”); a ofensiva do Tet (“o imperialismo é um tigre de papel”); a revolta estudantil, em maio, na França; a invasão (segundo Daniel, “libertação”) da Checoslováquia por tropas do Pacto de Varsóvia… Videntes, por sua vez, prognosticavam os acontecimentos de 1669 (ninguém se dera ao trabalho de guardar as previsões para 1968, a fim de conferi-las): galã do cinema norte-americano pereceria em acidente automobilístico; De Gaulle seria assassinado por um fanático; falha mecânica forçaria o adiamento da missão tripulada à lua, planejada para julho…
Aqui no Brasil, manifestações estudantis de repúdio ao regime militar ao longo de praticamente todo o ano culminaram com a decretação, bem no seu finalzinho, do Ato Institucional nº 5 e do recesso do Congresso. Os quatro amigos divergiram quanto à questão. Por exemplo, segundo a opinião de Renato ‹ talvez influenciado pela indignação do pai que, mais de uma vez, ficara ilhado em seu escritório, impedido de sair para almoçar, pelo gás lacrimogêneo atirado pela polícia do exército contra os estudantes ‹, os distúrbios estudantis não levavam a absolutamente nada; os estudantes aproveitariam melhor o seu tempo, com maiores dividendos para a nação, nas salas de aula e bibliotecas. “Assim como o lixeiro tem de recolher o lixo e o engenheiro, calcular estruturas, o estudante precisa estudar!” Citava como paradigma a Suécia, país que, sem guerra civil, sem prisões em massa, sem coletivização forçada, sem o sacrifício de gerações inteiras, atingira invejável padrão de vida, educação universal, saúde gratuita, amor livre, mortalidade infantil de zero vírgula zero alguma coisa… (Por que as esquerdas não enxergavam esse fato?) Marcos contra-argumentava com a visão romântica de que, se todos os homens fossem acomodados, como aqueles que só pensam na carreira profissional e em ganhar dinheiro, a humanidade continuaria nas cavernas. “O primeiro subversivo”, dizia, “foi o maluco que abandonou a caverna de seus pais, de seus avôs e bisavôs para construir a primeira casa.” Já Afonso mantinha-se neutro: “em política, futebol e religião, todas as partes têm sua pitada de razão”, argumentava mineiramente (posto fosse carioca). Quanto a Daniel “Maracanã”, nos últimos tempos, dera para escutar, num imenso rádio de pilhas com telescópica antena, transmissões em ondas curtas dos mais remotos rincões: Alemanha, Vietnã, Austrália… No entanto, detinha-se mais regularmente nas programações em línguas portuguesa e espanhola das difusoras de países comunistas; sabia com precisão as freqüências das rádios de Moscou, Pequim, Havana. Entusiasmava-se com a descoberta daquele mundo até então desconhecido, onde, assim imaginava, as mesquinharias do dia-a-dia burguês, a competição, a ganância, a exploração do mais fraco haviam dado lugar a virtudes mais nobres: a solidariedade, a cooperação, a construção do socialismo. Daniel aderiu ao movimento estudantil de corpo e alma: fez questão de marchar bem na frente na passeata dos cem mil, que protestou contra o assassinato do estudante Edson Luís. Na invasão da Checoslováquia, Daniel chegou ao limiar de romper com os amigos, que insistiam em ver na manobra o canto do cisne do comunismo, a prova contundente de que os soviéticos não eram menos imperialistas do que os norte-americanos. Daniel, que acompanhara os eventos pelos noticiários da rádio de Moscou, conhecia a verdade melhor do que os amigos: o povo checo recusava-se a ver nos soldados russos inimigos, as conversações entre as partes transcorriam em clima de franca camaradagem, até Fidel Castro apoiara a ação dos países socialistas de ajuda à Checoslováquia. Em certa ocasião, Daniel quase chegara às lágrimas ao escutar, na rádio de Pequim, relato de um operário que se curara de insidiosa doença graças aos “pensamentos do camarada Mao Tsetung”, os quais estudara no leito hospitalar.
No dia 31, Afonso telegrafou do Rio informando a Marcos que passaria o réveillon na praia, só retornando a Teresópolis na primeira semana do ano novo. Daniel pretextou indisposição qualquer para ficar a sós com a namorada secreta. Marcos deu uma passada na casa da Sônia, mas os planos da musicista de romper o ano em contacto com a natureza tocando violoncelo não o seduziram. Para piorar ainda mais a situação, a provisão de maconha trazida do Rio havia chegado ao fim, e Marcos não conhecia nenhuma boca de fumo em Teresópolis. À falta de melhor opção, rumou para a Fazenda da Paz, onde encontrou Renato bebericando cerveja e contando a uma platéia a piada de sir Lancelote nas Cruzadas, conhecem? Marcos aderiu ao grupo de marmanjos e, para não ficar deslocado, contou as únicas duas ou três anedotas que sabia de cor. O ano de 1969 encontrou a turma de cômicos à beira da piscina, cada qual mais bêbado do que o outro, dando vivas à concatenação ‹ que só ocorre uma vez por século, mais rara, portanto, do que o cometa de Halley ‹ do algarismo seis com o nove, que a imaginação popular associou à posição sexual dos chupadores:
– Vira! Vira! Vira! ‹ exclamou alguém, emborcando copo de uísque falsificado, cujos deletérios efeitos só se fariam sentir na manhã seguinte.
– Virou! ‹ incentivou um outro, já em sua undécima cerveja.
– Estamos entrando em 69! ‹ bradou um terceiro.
– 69: número muito sugestivo!
– Ano de muita sacanagem!
– Ano de muito “sessenta e nove”!
– Em 1969, quero fazer 69 “sessenta e noves”…
– Com 69 mulheres diferentes!
– E viva 69!
Em plena madrugada, “ducha de água fria” atrapalhou o entusiasmo do grupo. Em meio a piada hilária de Bocage, Renato pôs-se, de inopino, a choramingar, a se queixar de que estava “num grilo terrível”, de que temia “entrar numa viagem”, etc. Os companheiros, todos falando ao mesmo tempo, procuravam tranqüilizá-lo: “Isso não é nada”, “Você bebeu além da conta”, “Lava o rosto com água fria, que passa”. Debalde. As feições de Renato exprimiam agonia; lágrimas desciam-lhe pelo rosto:
– Se eu entrar em viagem, a respiração parará e eu morrerei!
– Ninguém está viajando; estamos todos sentados na Fazenda da Paz, em volta da piscina ‹ argumentou, com bastante lógica, um dos marmanjos.
– Vocês não estão entendendo! ‹ vociferou Renato. ‹ Estou entrando numa bad, numa de horror!
Marcos, conhecedor das gírias de malandros, pressentiu que o caso era mais grave do que imaginava a vã filosofia do grupo e sugeriu levarem o sofredor ao hospital municipal. Porém, depois de tanta cerveja e tanto uísque e tanto cigarro (careta) e tanta piada, quem se habilitaria, àquela hora da madrugada, a conduzir a vítima? “Não é caso para hospital”, opinou alguém, “basta uma boa ducha gelada que, em dois tempos, ele melhorará…” “Ducha gelada é perigosa, pode pegar pneumonia: é melhor uns copos de leite com bastante açúcar”. E, enquanto o pobre Renato estertorava, o grupo filosoficamente discutia que ação deveria tomar: talvez avisar os pais de Renato. “Mas a esta hora da madrugada?”. “Será que Engov não resolve?” Conclusão: assim como à tormenta se segue a bonança (post nubila Phoebus), as lamúrias de Renato deram, subitamente, lugar a um sono sem sonhos como o dos mortos. No dia seguinte, Renato sentia como que um prego encravado na cabeça (“que bode!”). Porém, não se lembrava dos tristes acontecimentos da véspera: “Estávamos à beira da piscina contando piadas… aí, não me lembro mais de nada…” No almoço em família, a mãe perguntou:
– Meu filho, por acaso você sabe quem anda sumindo com os meus moderadores de apetite? A caixa está cada dia mais vazia.
– Não terá sido a empregada? ‹ rebateu Renato. E ficou o dito pelo não dito.
Nesse mesmo dia, Afonso retornou a Teresópolis. O pai de Marcos, por seu turno, teve de voltar à Cidade Maravilhosa: “compromissos inadiáveis” o chamavam. (Alguma amante?, imaginou Marcos.) Renato tomou mais uma de suas decisões jamais cumpridas: “daria um tempo” com anfetaminas, ficando só na birita. Os dois meses de férias restantes transcorreram sem percalços. O pedido de Afonso a Iemanjá foi atendido: “amarrou”, na boate do Hygino, brotinho dois anos mais nova, peitinhos desabrochando. Renato não poupou a gozação:
– Sabem qual é o cúmulo da ingenuidade? A garota espremer os peitinhos que nascem pensando serem espinhas!
Marcos envolveu-se em mais dois ou três namoros, todos efêmeros, não ultrapassando uma semana. Renato descrevia mil e uma conquistas ocorridas na saída de um cinema ou dentro de um ônibus, mas nunca era visto acompanhado de alguma mulher. “As mulheres que ele paquera devem ser invisíveis”, gozou uma vez Daniel. Rita, por seu turno, rompeu definitivamente com Daniel, depois que o ousado namorado tentou “sarrá-la” na boceta.
Os programas obedeciam a certa regularidade: pedalavam até o Quebra-Frascos ou o Soberbo ‹ certa tarde, num surto de aventura, desceram a serra de bicicleta até a subsede do parque, tendo a sorte de conseguir carona de volta na traseira de um caminhão; jogavam boliche; caçavam garotas no Ingá, no Bridge, no Hygino; saboreavam milk-shake no ngelo; degustavam Apfelstrudel noMickey e Bauru num bar da Feliciano Sodré cujo garçom, de tão feio, apelidaram de Trombada; nadavam na Fazenda da Paz, no parque, no Maguru (onde Renato conhecia um amigo que, aos quinze anos, já operara de uma úlcera precoce). O parque de diversões exibia, naquele verão, nova atração: capitão ngelo Zito descrevendo piruetas no globo da morte com a motocicleta. Assistiram às sessões vespertinas do cine Vitória; riram de Flávio Cavalcânti quebrando discos que não prestavam; Marcos terminou O Encontro Marcado, tentou Treblinka, que largou na trigésima página, passando finalmente para o Admirável Mundo Novo. Daniel encalhou na décima-primeira página de alentado volume de professor mexicano sobre a ética marxista.
Domingo de Carnaval caiu em 16 de fevereiro. Na semana anterior, os quatro aventureiros haviam subido a Pedra do Sino, com grupo de excursionistas da Fazenda da Paz. Partiram na madrugada de sábado em direção ao terceiro abrigo, onde almoçaram salsichas e presuntadas em lata com macarrão e pernoitaram; às três da madrugada de domingo, sob um frio de rachar, retomaram a caminhada, atingindo o quarto abrigo (completamente incendiado por vândalos) no início da manhã. Denso nevoeiro quase os desviou da trilha final até o topo da montanha. Dissipada a névoa, depois que o sol se levantou um pouco, foram brindados com um panorama daqueles que fazem com que acreditemos na criação divina, tal e qual narrada na Bíblia: flores silvestres, musgo de verde de alga, profusão de montanhas ao redor, todas mais baixas, a baía da Guanabara, céu límpido de um azul de desenho animado… Na descida, todos os santos ajudaram; às duas da tarde, devoraram a feijoada em lata, de volta ao terceiro abrigo e, à noitinha, estavam de volta.
Não deixemos passar em brancas nuvens a misteriosa desaparição de Marcos na última quarta-feira de janeiro. Afonso, ao levantar de manhã, encontrou lacônico bilhete do amigo, informando ter saído para “resolver assunto particular” e não poder prever a sua volta. Às três da tarde, a empregada preocupada instando Afonso a ir à telefônica avisar o pai de Marcos do sumiço do filho, eis que esse reaparece lépido e fagueiro:
– Onde foi que você se meteu? ‹ perguntaram em coro Afonso e a empregada.
– Estava resolvendo assuntos particulares. É da conta de vocês? ‹ respondeu rispidamente, logo se enfiando no quarto, de onde só ressurgiu na manhã do dia seguinte. Forte perfume provinha de seu quarto, como se algum vidro de essência estivesse destampado. Foi assim que Marcos se reabasteceu com dez “dólares” de maconha muito bem servidos para o Carnaval.
Nem tudo foram flores durante o tríduo momesco. Premidos pelos elevados preços dos ingressos para os bailes (trinta por cabeça), Renato convenceu a moçada a entrarem no Ingá de penetra, pulando um muro de fundos que ele conhecia. A conseqüência do estouvado ato foi tragicômica: acabaram interceptados pelos seguranças do clube e coagidos a “soltar” dez por cabeça para se livrarem da delegacia de polícia. Marcos tremia como varas verdes, com medo de “dar bandeira”, já que tinha queimado uns bons fumos e não tomara a precaução de escovar os dentes e pingar colírio (“quem não tem colírio usa óculos escuros”). Daniel interpretou o episódio como sinal da injustiça do capitalismo. Os aprendizes de “penetra” acabaram varando a madrugada de domingo no bar do Trombada, apostando quem bebia mais gim tônica. E viva a Vanguarda Alcoólica Teresopolitana de 1969!
No baile de domingo, preferiram não arriscar. À tarde, ensaiaram algumas marchinhas: “Este ano não vai ser igual aquele que passou, eu não brinquei, você também não brincou…”, numa desafinação generalizada. Às dez da noite, ao pisarem o salão, já estavam bêbados, que Carnaval sem birita não tem graça. Pularam, pularam, pularam a noite inteira, só parando depois que a banda tocou a tradicional “Está chegando a hora”, o dia já raiando.
No dia seguinte, Marcos acordou atacado de acesso de mau humor. Passou o dia sozinho, balançando-se na rede e folheando, sem ler, as páginas de seu livro. À noite, resolveu não ir ao baile: decidira visitar Sônia. “Enlouqueceu? Vai trocar as colombinas pela múmia tocadora de música fúnebre?” Em vão os amigos invocaram os estatutos (imaginários) da VAT 69, que, segundo Renato, proibiam a audição de música clássica no Carnaval.
Contudo, Marcos tinha suas razões para se sentir amargurado: em pleno baile de domingo, topara com Dóris ‹ a menininha do Hygino que lhe dera bolo na Taberna Alpina ‹ fantasiada de tirolesa e agarrada a indivíduo musculoso, de má catadura e tatuagem no braço, ambos se beijando sofregamente na boca, língua contra língua, em pleno salão!