Marcos, o iluminado – parte 13

(VIAGEM MUITO DOIDA, BICHO, PELOS ANOS SESSENTA)

13 Penúltimo Capítulo
MARCOS DESCOLAVA FUMO com uma turminha que fazia ponto todas as tardes ao lado da lanchonete situada defronte da praça Antero de Quental. Normalmente às sextas-feiras (véspera de fim de semana), transava uma mutuca: vinha bem servida e o fumo era do bom. Certo dia, o cara da motoca deu um toque:
– Cara, tá a fim de curtir um barato diferente?
– Pô, – respondeu Marcos – tô a fim de ficar muito ligadão! Podes crer.
– Seguinte: pintou um ácido maneiro, tá sacando?, lá dos States, que um amigo meu, comissário da Varig, descolou. Purple haze, morou? Chocante, tá sabendo? Tu tá a fim?
– Depende, meu irmão! Tô meio duro, sacumé?
– Corta essa, cara! São só trinta paus. E dá para duas viagens, tá sacando?
– Pô, mas se eu der trinta pau pelo ácido, o fuminho como é que fica?
– Qual é, bicho! Tá achando que vou deixar você na mão? Tu leva o ácido que eu descolo uma presença. Uma dólar de graça!
– Falou, bicho! Tu é gente fina!
– Sem essa! Vamos pra trás daquela árvore, que aqui é sujeira.
Sentado no banco traseiro do ônibus, a caminho de casa, Marcos mal continha a emoção: o lufa-lufa à sua volta – boys de escritório e estudantes ginasianos, fazendo-se de distraídos para não cederem o lugar à mulher grávida de pé, vítima, a cada freada, dos rigores da lei da inércia, ameaçando atirá-la ao chão; o trocador, em sua rotina bestificante, “tem cinqüenta centavos para facilitar?”, “tenho um cruzeiro, serve?” (porra, por que a mania de fixar tarifas quebradas?); o motorista suado conduzindo denodadamente a traquitana; os paraíbas de obra; as moças tesudas; as feias, pois a natureza é ingrata; as empregadas domésticas; uma babá conduzindo uma criança; o almofadinha de terno e gravata; um monte de gente carrancuda, como se a vida fosse um castigo ou a Terra um inferno; e o povo formiguejando nas calçadas… – todo aquele lufa-lufa, dizíamos, afigurava-se a Marcos (às vésperas da pretensa “iluminação”) de uma caretice sem tamanho, bicho!

No primeiro número de A Tocha, Daniel colaborara com uma análise da reforma universitária. No segundo número, contribuiu com uma crônica, em tom panfletário e tinturas cinzentas, acerca das injustiças sociais: descreveu trabalhadores em cruel e incessante labuta para ganharem, em um mês, o equivalente à remuneração do capitalista em uma hora; crianças esquálidas, lúgubres, subnutridas morrendo em salas de espera de hospitais; jovens visionários abrindo mão dos estudos queridos para se tornarem arrimos de família, depois da morte do pai; trapos de gente nas sarjetas, escarrando impurezas e sobrevivendo de restos de comida das latas de lixo; e mulheres de sociedade desalmadas, ostentando caríssimas jóias e vestidos, insensíveis ao padecimento do próximo. Assassinas!
Quando um dos redatores de A Tocha caiu doente (ou teria sido preso?), Daniel foi convidado para o seu lugar. Vejamos, leitor, como funcionava a revista: A cada número, um dos redatores era incumbido de recolher as colaborações dos colegas do instituto (o rodízio devia-se a razões de segurança). Em princípio, qualquer colaboração era bem-vinda, mas a preferência recaía sobre matérias que enfocassem criticamente a realidade brasileira. O passo seguinte consistia em datilografar os estênceis, tarefa repartida entre os redatores. Depois, rodavam a revista no mimeógrafo de um curso de Artigo 99, onde um dos redatores era professor. Finalmente, as revistas, encapadas e grampeadas, eram repassadas para os “jornaleiros”, elementos de cada turma incumbidos de sua venda.
Num sábado ensolarado em que mimeografavam a revista no curso, o redator-chefe, veterano do sétimo semestre (segundo alguns, estudante profissional), perguntou a Daniel se tinha compromisso naquela noite. “Em princípio, não”, respondeu Daniel, ao que o colega indagou se gostaria de participar da reunião de um grupo de estudos.
– Para estudar o quê? – replicou Daniel. – Não basta o que estudamos na faculdade?
O colega, então, explicou que a história lecionada no instituto era completamente ideológica, refletindo o ponto de vista das classes dominantes.
Os poucos professores que ministravam uma história mais progressista tinham sido afastados. Os remanescentes se limitavam a arrolar sucessões de imperadores, generais, reis, como se o povo jamais tivesse existido. Como se as pirâmides do Egito tivessem sido erguidas por passe de mágica. Ademais, após a prisão do professor Medeiros, os professores passaram a ter medo de ensinar a Revolução Russa. Enquanto dizia estas palavras, passou às mãos de Daniel exemplar de Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, a fim de que estudasse o segundo capítulo para a reunião daquela noite. O primeiro capítulo havia sido dissecado na semana anterior. “Agora, cuidado, não comente com ninguém sobre o grupo, que a repressão anda muito forte.”
À medida que freqüentava o grupo de trabalho, os horizontes de Daniel iam, paulatinamente, se estendendo. Descobriu que a revolução proletária, da qual a Revolução Russa fora pioneira, era historicamente inevitável (primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Esquerdismo); que a ditadura do proletariado era uma etapa necessária na guerra implacável contra a burguesia; que o Partido Comunista representava a vanguarda do proletariado, exigindo-se de seus integrantes disciplina de ferro. E deu-se conta, finalmente, de que o “grupo de estudos” constituía, na verdade, uma célula de um movimento patriótico e antiditatorial pela implantação da sociedade sem classes no Brasil.
Paralelamente aos estudos de marxismo-leninismo, Daniel passou a participar de algumas ações de agitação e propaganda: panfletagens, pichações, colagens, nos assentos de ônibus, de fitas gomadas com palavras de ordem. Assumiu, no movimento, o codinome de Chico. Já no primeiro mês de militância, logrou arregimentar dois novos companheiros, igualmente colaboradores da revista, sendo grandemente elogiado pelo líder da célula, a Unidos Venceremos. Por ocasião da transferência do líder para outra área, Chico foi democraticamente escolhido o seu substituto. A princípio, pensou em declinar do convite, mas o idealismo falou mais alto. Às vésperas da reunião de área, pouco antes do início da Copa do Mundo, Chico desconfiava de que uma importante operação vinha sendo planejada.

Numa das costumeiras idas à terma, Afonso acabou entabulando conversa com o tal economista de barba.
Naquela noite, em lugar do habitual livro, escondia-se atrás de um jornal, cuja manchete atraiu a atenção de Afonso; algo sobre um terrorista arrependido que aparecera na televisão instando os jovens a não repetirem o seu erro. O economista, aproveitando a deixa, lançou a pergunta:
– Você acredita que o arrependimento seja sincero ou é produto da tortura?
– Tortura? – repetiu Afonso, surpreso com a inusitada pergunta.
– Você crê que a confissão tenha sido espontânea? – repetiu o barbudinho.
– Por que não? – respondeu Afonso. Por que as coisas não podem ser o que parecem? Por que uma razão oculta (geralmente perversa) por detrás de tudo? A terma, naquela noite, andava meio vazia e Afonso – que, com um princípio de resfriado, não queria abusar da sauna – meteu-se a conversar com o economista. Este – bastante culto, por sinal – engrenou em interessante digressão sobre a assim denominada “teoria conspiratória”, segundo a qual fenômenos históricos, sociais, políticos, etc. ocultariam, nos bastidores, conspirações e maquinações de puro maquiavelismo. Consoante tal teoria, por detrás de, digamos, cada subida da Bolsa, ou a declaração de um ministro ou (citando o caso do jornal) o arrependimento de um subversivo estaria a ação de poderosíssimos grupos econômicos ou do Vaticano ou de perigosíssimas organizações revolucionárias ou de máfias internacionais ou dos maçons ou dos judeus. Em psicologia, a “visão conspiratória” encarnara-se na psicanálise, segundo a qual conteúdos conscientes – desejos, impulsos, temores – não passariam de fachadas para forças inconscientes totalmente antinômicas. A “potência” de Don Juan ocultaria, assim, tremenda insegurança sexual; a abnegação da irmã de caridade, profunda misantropia; a competência do cirurgião, o mais deslavado sadismo, etc. e tal. Em português claro: se a pessoa sonhasse com o pai, esse simbolizaria o analista; mas se sonhasse com o analista, ele simbolizaria o pai. “Você já fez psicanálise?”, perguntou a Afonso. “Até hoje, não tive necessidade.” Foi quando se deram conta de ainda não saberem o nome um do outro. O economista apresentou-se. Chamava-se Roberto, graduara-se em economia oito anos antes, partindo para a pós-graduação em Harvard. No momento, prestava consultoria a órgãos governamentais. Aliás, recentemente concluíra trabalho sobre “endividamento e reservas cambiais” para a equipe do doutor Delfim Netto. E (mudando de assunto) perguntou a Afonso se, depois da sauna, gostaria de jantar com ele uma paella. “As despesas, pode deixá-las por minha conta. Você será meu convidado.” Afonso, que já estava com fome, aceitou. O restaurante ficava na Atlântica e todos os garçons conheciam Roberto, tratando-o de “doutor”. “Deve ser pessoa importante”, conjecturou Afonso. Para acompanhar os ovos de codorna e mexilhões do couvert, pediram uma sangria. Afonso, via de regra tímido, desinibiu-se um pouco. Contou sobre o pai arquiteto e de como resolvera seguir a mesma carreira. “Bonita carreira”, observou Roberto e, exibindo a sua cultura enciclopédica, passou a discorrer sobre os diferentes estilos arquitetônicos. Pouco depois, solicitou ao garçom mais uns ovinhos de codorna. “O senhor já quer fazer o pedido?”, perguntou este último. “O de sempre”, respondeu Roberto. Durante o jantar, passearam por diferentes assuntos, Afonso mais ouvidos do que boca. Depois do cafezinho, Roberto ofereceu uma carona para Afonso. Este agradeceu, mas morava ali pertinho e não lhe faria mal nenhum ir à pé. Além do mais, a caminhada ajudaria a digestão. – Sexta-feira, darei uma reunião às oito da noite lá em casa e faço questão de convidá-lo – disse Roberto. E, entregando a Afonso o seu cartão de visita, despediu-se, deixando escapar a observação: – Sabe que estou começando a gostar de você?

– Descreva-me como foi a crise – solicita o psiquiatra.
– Que dia é hoje? Quinta-feira? Então foi anteontem. Eu estava na faculdade. De uma e meia às quatro, senti-me bem. Tive uma aula interessante de resistência dos materiais. Tenho procurado estudar bastante para me sentir produtivo e driblar a depressão. Além disso, gosto da engenharia e da universidade e queria conseguir uma vida mais tranqüila, sem essas crises súbitas que me atrapalham.
– O senhor poderia descrever a crise?
– Às quatro e meia, começou a aula de Problemas Brasileiros. Nos primeiros quinze minutos, consegui prestar atenção. Nos quarenta e cinco minutos restantes, entretanto, eu ouvia a professora (afinal, não tinha como fugir de sua voz), mas sem escutá-la, sabe como?
– Prossiga.
– Após o intervalo, em que tomei dois cafezinhos, começou a leitura dos trabalhos dos alunos. Eu havia caprichado no meu trabalho, de modo que me ofereci para lê-lo. Estava supernervoso, mas achei que conseguiria me controlar. Comecei a ler a dissertação. De repente, o coração disparou.
Assustei-me com a própria voz, pois ecoava em minha mente como se eu tivesse tomado alguma droga, entende?
– O senhor tem feito uso de drogas nos últimos tempos?
– Depois que comecei o tratamento, só tenho tomado os remédios que o senhor tem receitado. Aliás, faz quase um ano que não tomo bola. Ou melhor, dez meses.
Prosseguindo. Durante minha leitura, houve momentos em que alguns colegas riram. Sacumé, em tudo costumo dar um toque de humor. Na minha adolescência, o senhor sabe?, eu tinha fama de piadista. As risadas, contudo, soaram assustadoras, está entendendo? De qualquer maneira, senti-me realizado por ter conseguido expor meu trabalho, apesar da taquicardia, de minha voz ter soado irreal e de os risos dos colegas terem se transfigurado.
– Transfigurado? Como assim?
– Deixa eu continuar. Terminada a aula, peguei o carro, a fim de voltar para casa. Dentro do meu Fusca, sinto-me menos inseguro do que nos outros lugares. Durante a viagem de automóvel, tem-se, por alguns momentos, um destino, uma meta bem-definida. Dá para entender? A vida, por alguns momentos, ganha um significado. Jantei. Com meus pais e, depois da sobremesa, fui para o meu quarto ler o jornal. Sentia forte pressão na região posterior do crânio. Aqui. Meus pais receberam a visita de um casal. Houve uma hora em que dona Rute veio me ver. Para saber como eu estou. A notícia de minha depressão já se espalhou. Por toda parte. Começamos a conversar. Minha voz continuava cavernosa. Como na faculdade. De repente, a imagem de dona Rute se deformou. Sabe como é? Não se tratou propriamente de uma alucinação. Objetivamente. O senhor está entendendo? Minha percepção de dona Rute não se alterou. Mas, para mim, era como se tivesse se alterado. Alguma coisa em dona Rute se transformou. Não sei explicar o quê. – Renato começa a chorar. – Doutor, por que ando tão angustiado? Por que não consigo mais ser feliz como antigamente? O que faz com que uma pessoa perca o gosto pela vida? Por que esta sucessão de infernos mentais?
– Senhor Renato, – responde o psiquiatra, o seu eletroencefalograma não acusou nenhuma anormalidade. O senhor está com leve depressão, como conseqüência da tensão do vestibular. Por ora, pode manter a mesma dosagem do remédio: uma pílula de manhã, outra no almoço e a última no jantar. Se tiver outra crise, telefone. Continue levando uma vida normal, indo à faculdade, visitando os amigos, mesmo não se sentindo motivado. E vamos deixar marcada uma consulta extra para sexta-feira que vem, estamos combinados?

Em sua viagem de ácido lisérgico, Marcos teve a sensação de que os estados de espírito não passavam de casas de uma gigantesca roleta de jogo, como se a vida fosse um cassino. A cada casa correspondia uma cor. A casa da sensualidade era cor de rosa e, nela, ouviam-se sininhos, como aqueles que tocam quando se tem um orgasmo. A casa da alegria era cor de laranja e lá se ouvia uma música semelhante a um hino celestial. E havia a casa do amor, do barato, do desbunde… E quem rodava a roleta? Marcos teve a impressão de ser Deus o crupiê do cassino. (Em tempo: havia também a casa da fé.) No píncaro (a roleta erguia-se verticalmente, como uma roda-gigante), a casa caleidoscópica da Revelação, da consciência cósmica. De longe, Marcos entrevia uma nesga de sua beleza: vitrais, como dos templos góticos, serafins… (o resto era indistinguível). “Será que no próximo sorteio pararei na Revelação?”, indagou-se Marcos. De súbito, a placidez da “viagem” foi turvada por um sobressalto. Marcos deu-se conta de que, nas regiões antípodas à casa da Revelação, como a aranha que espreita a mosca, ficavam de tocaia os sentimentos negativos: medo, dor, “grilo”, “bode”… E se, no sorteio seguinte, caísse numa daquelas casas tenebrosas, povoadas de grifos, harpias, fúrias, tarântulas, esqueletos, exus? Cada novo sorteio mais o aproximava do reino de Plutão. Vinte (o inferno ficava no zero), dezoito, dezesseis… Marcos começou a se apavorar. Lembraram-lhe as noites em que, ainda criança, acordava aos prantos, temendo a escuridão. Quatorze, doze… De golpe, teve o estalo: não era Deus quem virava a roleta, mas ele próprio, Marcos – inconscientemente, para sermos precisos; como foi que Freud não chegou a essa sacação?. Era tudo uma questão de controle da mente. Poderia escolher a casa que desejasse, bastando para isso se concentrar. Marcos fez um esforço: vinte, vinte e cinco, a região pavorosa foi se tornando cada vez mais distante. Agora que descobrira a faculdade de escolher a casa, qual delas elegeria? Sentiu-se tentado a percorrer a região lúbrica, perder-se nos braços de tentadora huri, desfrutar de orgasmos infindáveis. Deixaria de lado a Revelação, a Consciência Cósmica, o Satori? Desperdiçaria a chance de ingressar no rol dos Iluminados? Quarenta, cinqüenta… Foi quando Marcos notou a luminosidade através das venezianas: despontava a madrugada e o efeito do LSD começava a declinar.
Na próxima vez em que foi se abastecer de fumo, encontrou o Boca injuriado:
– Bicho, tá ruço, o careta aí dono da lanchonete deu o serviço pros homes e dançou todo mundo! Cara, foi o maior sufoco, podes crer! Tava eu, o Doca e o Ricardão muito doidos, curtindo o maior barato, quando a joaninha pintou. Os homens desceram desarvorados, encostando todo mundo no muro com as mãos para cima. O Doca ainda tentou sartá na maior cara de pau e levou tremenda prensa! Chocante, bicho! Os homens levaram a gente pra delegacia e mandaram ficar todo mundo nu!
– Bicho, que grilo, como foi que vocês se safaram? – perguntou Marcos.
– Brother, não foi fácil não. O delegado nos chamou no gabinete e ameaçou abrir inquérito. Cara, são dez anos de cana, tá sabendo? Aí eu fui logo desembuchando: seu dotô, somos tudo gente direita, de boa família, da zona Sul, não dá para dar uma maneirada? Aí o cana quis que explicássemos todo aquele fumo com a gente. Seu dotô, juro por Deus e Nossa Senhora, aqui ninguém é traficante, é tudo para consumo próprio. Aí o delegado deu uma gargalhada e começou a dar o toque, que tinha contraído uma dívida, que não tinha como pagar, se não podíamos colaborar, e coisa e tal. Moral da história: morremos numa grana preta, xará!
– Que grilo, bicho!
– E tá a maior sujeira agora. O camburão fica rondando o dia todo.
– Bicho, mas você não tem nem uma presencinha para o amigo?
– Você está a fim de ver minha caveira?
– Estou na maior fissura – continuou Marcos – e só sobraram umas beatinhas e baganinhas. Não tô a fim de ficar no birinaite. Você sabe onde posso transar umas coisinhas?
– Meu irmão, vou dar o toque porque você é meu amigo, mas não vai sair por aí dando bandeira, morou? Seguinte: saca a Cruzada?
– Lá não é sujeira?
– Xará, corta essa, é só tu ficar na tua!
– Os homes não ficam na espreita?
– Sem essa, até hoje não dançou ninguém. Acho que o dono da boca solta uma grana pro delegado. Você faz o seguinte: você entra no primeiro prédio, bem em frente da praça, na cara de pau, sem encarar ninguém, e vai direto para o apartamento 215. Você bate três vezes na porta, que a campainha está quebrada, e quando atender o Marquinho, tu diz que foi a mando aqui do Boca, sacou?
– E como é a pinta desse Marquinho? – perguntou Marcos.
– Tem um dente de ouro bem na frente e usa óculos escuros.
– Falou e disse! Obrigado pelo toque.
– Falou, gente boa!
Entretanto, para azar de Marcos, no dia anterior estourara uma rixa entre o pessoal da polícia civil e da PM em torno da distribuição da “caixinha” da boca de fumo, de modo que acabou vítima do fogo cruzado. Detido no Jardim de Alá com cem gramas de fumo no bolso, foi levado de camburão para se explicar ao senhor delegado. De início, Marcos tentou desconversar, mas, nervoso, acabou se enrolando e se contradizendo e entrando numa de horror. De modo a limpar a barra, não encontrou outra saída senão apelar para o pai, conhecido criminalista.
Desta feita, dançou feio. O pai, contrafeito, decidiu internar o filho à força num sanatório para toxicômanos na Baixada Fluminense. Lá, Marcos conheceu Cristiane, garota muito doida, que quase ficara pinel de tanto cafungar brilho.
Cupido andava atento e se apaixonaram à primeira vista.
Depois de alguns dias, Marcos descobriu que, com um pouco de grana, conseguiam-se descolar uns baratos com os próprios enfermeiros – só que ele estava durango. Umas minas muito fissuradas costumavam transar com os médicos, em troca de um charo, e Marcos foi se virando à base de presenças. Só que o fumo era misturado com esterco e grama e chá e dava depois o maior bode. Cristiane e Marcos começaram a arquitetar a fuga do sanatório.