Ela mudou-se para a casa em frente, no início do inverno. Era uma menininha loura, de pele rosada e olhos claros. Tinha aproximadamente minha idade.
Eu era um garoto de dez anos, tímido e recluso em meu quarto. De lá só saia para a escola, o médico ou quando meus pais conseguiam arrastar-me para algum passeio.
Aquela garotinha encantou-me desde o primeiro dia. Não conseguia resiste àquele sorriso. Quando perguntou-me se podíamos ser amigos, prontamente respondi: “Sim!!”. Desde então, não nos largamos mais. Éramos como unha e carne.
Foi o melhor inverno de minha vida. Estávamos sempre juntos. Andávamos para todos os lados, descobrindo lugares novos e divertidos. Foi aí que descobrimos aquela velha fábrica.
Era um lugar muito grande, com cercas de arame altas. Deveria ser impossível, para um adulto, entrar ali mas, para nós, era muito fácil: Nos esgueiramos entre os portões, forçando as correntes. Lá dentro, vimos vários tubos metálicos e grandes tanques.
Ela queria ver tudo do alto. Saber o que havia nos tanques. Eu tinha medo. Muito medo, mas ela insistia. Queria subir e partiu na frente. Eu a acompanhava de perto sempre com amedrontado. Sempre pedindo para descermos. Não sei porque mas, minha presença parecia dar mais coragem a ela.
Quando chegamos no alto, vimos que havia um caldo verde nos tanques e uma fumaça subindo até o teto. Ela cismou em querer tocar aquela fumaça. Debruçou-se na barra da plataforma em que estávamos, esticando os braços em direção àquela névoa. Eu não conseguia mais falar ou mover-me. Apenas assistia aquela cena assustadora. De repete, ela caiu e desapareceu naquela coisa verde. Eu não sabia o que fazer. Não conseguia vê-la. Até que ela veio à tona, debatendo-se e gritando. Fiquei desesperado, correndo e chorando enquanto ouvia os gritos dela enchendo meus ouvidos e minha cabeça. Desci, peguei uma barra de ferro e comecei a bater no tanque. Ele estava tão enferrujado que começou a abrir-se. Senti o líquido verde molhando minhas pernas, mas continuei batendo mais e mais forte.
Depois que todo aquele caldo escoou, percebi que havia feito um rasgo quase de minha altura. Pude vê-la deitada inerte dentro do tanque. Continuei batendo violentamente nas bordas do rasgo até que ficasse largo suficiente para eu passar.
Ela estava lá, parada… Como se estivesse dormindo. Eu agitei-a, gritei por ela, mas nada aconteceu. Então segurei-a nos braços e carreguei-a para fora dali. Meu rosto estava coberto de lágrimas, meu corpo estava sujo, encharcado e suado. Sentia uma dor muito forte no peito, mas não era por causa do esforço. Doía-me a perda.
Caminhei por horas com ela em meus braços. Não queria abandoná-la, nem deixá-la ser enterrada para apodrecer. Queria mantê-la linda como sempre foi.
A neve estava alta e o ar, muito frio. Parei diante do que, para mim, era uma montanha de gelo. Subi ao topo. Comecei a cavar (Queria deixá-la bem protegida). Quando não conseguia mais sentir meus dedos, parei. Meus braços estavam pesados. Arrastei-a para dentro do buraco e deitei-a carinhosamente sobre aquela cama de gelo.
Ela parecia estar dormindo. Deixei-a ali coberta por meio metro de neve e fui para casa, tranquei-me no quarto e voltei a ser recluso. Aquela garota havia se transformado no grande amor de minha vida e meu maior trauma. E, por mais que eu não desejasse, um dia alguém bateria minha porta, fazendo perguntas que eu não queria responder. E, por mais que eu rezasse, a primavera um dia chegaria…