Vulto tá lá no miolo do campo. Estrupiço encolhido. Mancha branquicenta mal distinguida no lusco-fusco da noite que chega engolindo a vida. Acabou a pelada que democraticamente reunia companheirama das redondezas igualando todo mundo. Time do Ranca-toco se mandando aos grupos, cada grupo pro seu lado. Dormir cedo. Segunda-feira na roça dia de branco não é não.
– Ô Lilico! Bora, sô! Tá caçano imbondo? Vai durmi aí no meio do campo?
– Vô já, Zequinha! Vai ino! Gora memo eu vô!…
– Cuidado com a sombração, heim?
– Tá bão, Zequinha! Dexa comigo!
Últimos gatos pingados se mandaram. Só ficou Lilico, o vulto lá do meio do campo embrenhado na capoeira do cerrado. Ao lado da igrejinha velha e de pouca reza, cercada de coivaras ainda esturricadas pela seca que começava a ir embora. Rapaz tá alegre não. Gosto insonso no peito. Gungunando sozinho. Cansado das brigas com a bola, corpo dolorido da correria, tá lá mastigando talinhos da grama para matar a sede enquanto remói pensamentos e dores. Dores da paixão doíam mais que dores do corpo. Muito mais. Dezoito anos atrás, nesse dia, 15 de outubro, pai fora embora, deixando-o molecote ainda, plantado no mesmo lugar, no miolo do campo.
– Vô’imbora, meu fio. Um dia volto. Um dia cê vai entender!
Lilico, com olhos interrogativos e cheios de lágrimas, viu o pai, com choro sufocado, sumir na curva da estrada, atrás da moita de taboca misturada com articum e gabiroba. Última imagem que guardou do pai. Nunca mais nem notícia. Nem explicação. Só dúvidas.
Depois de todo esse tempo ele tá lá, no mesmo lugar onde foi abandonado. Novamente sozinho, com o peito atravancado, olhando pras primeiras estrelas que vão aparecendo para iluminar o breu da noite sem lua. Lágrimas de saudade rolam timidamente pela face. Aos poucos, naquele ermo, deixa o choro chegar com vontade. Ninguém vê, ninguém ouve, pode chorar. À dor da saudade juntou-se dor mais nova. Rabo de saia entra na história trazendo raiva. Duas dores aprontam confusão no coração de Lilico. Alzira. Houve briga. Lilico xingou Alzira xingou Lilico. Disseram coisas. Ouviram desaforos. E a primeira, grande e única paixão do moço estava indo pro beleléu. Arenga. Quizumba. Riliamento. Orgulho bravo brotou no peito.
– Nunca mais quero te vê, sua bisca disgramada!
– Tô nem aí, sô bocó! Larga mão de leréia! Nem gosto mais d’ocê! Amanhã já tô com outro, cê vai vê! O que num farta é home no mundo!…
– Ah é, né sua lambisgóia fiadamãe! Já tá de oio notro, né?
– Num é nada disso sô besta fedaputa!
O berro sem pensamento que adentrou no seu ouvido aterrorizou a moça que saiu catando cavaco numa correria despinguelada ladeira abaixo. Muito embora, de longe, enquanto se mandava macha da vida, gritasse, entre um intervalo e outro do choro, última frase do banzê:
– É fedaputa mesmo!… E eu posso prová!
Uma semana que não se viam e Lilico continuava embuchado. Chamego recolhido. Raiva mal cabia dentro daquele coração apertado e cheio de birra. Não entendia como gostara duma sirigaita daquelas. E até ela, aquela lambisgóia, levantara dúvidas sobre o comportamento daquela que fora sua mãe. Até ela. Rapaz não agüentava mais a situação que o acompanhava pela vida. Um xingamento daqueles, vindo de pessoa querida, era uma bofetada na cara.
Depois de muito chororô, lá pelas tantas da noite, Lilico ainda continuava no meio do campo, agora deitado de costas, olhando pro céu. Coração mais aliviado, sem tantas nuvens escuras. Começou a raciocinar pensando na Alzira. E até uma manchinha de saudade dela, surgida de mansinho, sem explicação nenhuma, começou a aparecer no cantinho do pensamento desobediente. Saudade dos seus cabelos cacheados, pretinhos que nem picumã, cheirando flor de jasmim do brejo. Daquelas sobrancelhas espessas rabiscadas caprichosamente acima dos grandes olhos cor da grama. Daquela boca úmida, cheirosa de canela, sempre pronta para os demorados e quentes beijos que se davam. E que causavam em Lilico a estranha sensação de serem sempre roubados. Talvez por sentir que essas coisas eram sempre proibidas. Por isso, feitas no escuro e às escondidas. E escuro na roça é o que não faltava. Tretou, relou, alguém descuidou, tascava beijo nela. Mocinha correspondia gostosamente se enroscando no corpo dele, respiração ofegante, coração acelerado… um ou outro gemido escapando. Se gente havia por perto, ele logo acudia. Chamegava-lhe outro beijo para tampar-lhe a boca de onde sorrateiramente mais gemidos teimavam em sair. Alzira, encoberta pelo manto da noite, virava mulher fogosa. Fazia coisas. Mãozinhas delicadas e maciinhas, feitas pra carinhar. Carinho gostoso que só Lilico sentira. Corpinho de moça de revista, daqueles de parar boiada desembestada. Lilico descobrira quase nada daquele mundo ainda. Apenas algumas incursões por certas partes mais montanhosas enchendo as mãos de maciez. Partes baixas nunca. Respeitava negativas da moça até quando sentia que a bichinha negava mais por obrigação do que por convicção. Tinha que ser assim. Mas enquanto ela não se permitia essas incursões, nem por descuido, especializou-se em fazê-las no moço. Daí ele endeusar tanto aquelas mãozinhas sábias e jeitosas.
Vontade de voltar ao que era antes, desejo de se encostar nela, se aninhar nos braços da Alzira, sentindo entrâncias e saliências daquele corpinho quente, cheiroso e gostoso. Belezura só. Lilico ficou lembrando das diversas situações de alegria e de prazer que passara junto da Alzira. Era o velho ingazeiro perto da ponte do Bode a maior testemunha das pequenas descobertas e do aprendizado de cada encontro. Ao pé do ingazeiro fizeram promessas, juras de amor e trocaram segredos. Até fofocas que desencavavam nas redondezas. Riam e eram felizes. O ingazeiro e seus eventuais visitantes alados assistiram aqueles encontros de amor que, como todos os outros, começavam com o simples pegar na mão. Depois, timidamente, os primeiros abraços, primeiro beijo desengonçado, palavras de carinho mal ditas e bem ditas, mãos bobas procurando caminhos novos, suspiros, gemidos, prazer… Lilico lembrou das vezes em que colocava a amada entre ele e o ingazeiro, primeiro nas noites da novena de São Sebastião. Depois qualquer dia era dia. Encostava todo seu corpo no dela e se abraçavam sentindo as palpitações fortes do coração um do outro. Depois de tudo Alzira virava gatinha manhosa e tinhosa de canto de fogão. Arredava dele não. Só juntamento queria. Cheinha de zonzeira.
Lembranças fizeram Lilico pensar em procurar a amada.
– Vô, procuro ela… a gente conversa… Disbandaia quiçassa digero…
Mal regorgitou esse pensamento, rapaz fez passa-passa. Lembrou da raiva e disse alto pros seus botões:
– Vô não! Ela é ingrata e regatera! Humilhou eu a riviria…
– Proseando sozinho, Lilico?
– Heim?!… Quem? Ieu?… Quem ta’í?…
Escuridão tanta que Lilico mal distinguia o vulto à sua frente. Cismado, rapidamente pensou nas quebradas das horas e ele ali, sozinho, no meio do cerrado, ao lado da cacaria de uma igrejinha mal assombrada e com esturricamento em derredor. Lá longe, bem no rumo do vulto à sua frente, o reflexo de uma lamparina na casa do Zequinha. E aquele visitante se intrometendo na sua solidão àquela hora da noite? Quem era ele? Lilico conhecia todo mundo nas redondezas, de cor e salteado, menos o dono daquela voz.
– Quem?… Quem é o sinhô? O que qué?
– Fica assustado não, meu filho! Sou de paz, sou amigo! Venho de longe, você não me conhece!
Lilico se acalmou ouvindo o som daquela voz. Ela tinha um tom suave que lhe parecia familiar. Esperou que o estranho tomasse a palavra.
– Você está preocupado, não é meu filho? É muito problema para o seu mundo, não é mesmo?
– É… mas quem disse que tenho pobremas?
– Não fique nervoso, meu filho! É claro que você está com problemas. Se não os tivesse não estaria aqui, nesta hora da noite, neste ermo, no meio da solidão. E, afinal, problemas, quem não os têm?
A voz do estranho era tão convincente, soava-lhe tão agradável aos ouvidos, que o rapaz foi-se desarmando no espírito e se preparando para uma proseada que diminuísse sua solidão, a raiva da Alzira e a saudade do pai.
– Mal de amor, meu filho?
Lilico começou a achar gostoso ser chamado de “meu filho” por um homem. Um estranho que falava tão bem. A última vez que ouvira esse tratamento foi quando o pai fora embora dezoito anos atrás. Respondeu mansamente:
– É… é mal de amor, meu sinhô!… Mó qui tô parado na intronquiada da vida!…
– Filho, você está passando por uma fase pela qual todos nós passamos. Uns com maior, outros com menor intensidade. Poucas são as pessoas que, numa certa etapa da vida, nunca sofreram por amor. Quase sempre são aquelas que nunca amaram. O amor exige doação e nem sempre as pessoas estão preparadas para isso. Pensam que o amor é troca e não é bem assim. A pessoa que ama de verdade, o faz sem esperar nada de volta. Ama e pronto.
– O negócio é que ela humilhou eu!… Me injeitô!… Fiquei disacuçuado!…
– Ora, meu filho! Vai ver ela não teve esta intenção. Talvez estivesse com raiva. Por acaso ela não foi provocada? Você não tem culpa nenhuma? Esses percalços na vida e no amor trazem amadurecimento pra gente. Daqui uns dias você estará rindo disso que foi passado. É sinal de que você subiu mais um degrau na vida. Aí, olhando para trás, verá que isto de agora é ninharia. Tutaméias.
– Sinhô fala com tanta certeza, tanta experiência…
– É filho. Tenho muita experiência nesse assunto. Já sofri muito por amor. Amei uma vez na vida. Foi amor tão grande que foi único. Começou numa reza da novena de Santana. Longe daqui. Quando meu olhar corisco passou de raspadela pelos avantajados e pelos topetes da donzelice disponível, trombei com o olhar dela. Aí, tanto no meu olho quanto no dela, o mesmo pensamento se debruçou e senti que foi nesse momento que minha alma se ajoelhou ante a dela. E eu, que em cada quebrada tinha rabo de saia disponível, fiquei embeiçado de amor por ela. Apaixonado estava num relance mas perdi tempo e tive vergonha de confessar o meu amor. No meu tempo homem não se dava a esses vexames. Andei com ela algumas vezes…
– E o sinhô num se casô co’ela?
– Não. Não me casei com ela, por mais estranho que possa parecer. Ela passou por mim tão suave e tão veloz quanto o vento. Quando tive certeza de que entre tantas outras era só a ela que eu amava, ela já tinha ido. Não adiantou eu voltar atrás, procurar, procurar… a vida muda, o mundo muda, as pessoas mudam. Como eu, ela estava também à procura do seu grande amor. Mandou recado dizendo que sentia muito não ter amor por mim. Casou com outro. Foi infeliz para sempre. Nunca encontrou par. Abandonou o marido e foi sofrer vida a fora, ora com um, ora com outro. O sofrimento foi destruindo sua vontade, seu corpo e sua beleza. Como desgraça pouca é bobagem, cada um a quem ela se entregava sugava-lhe um pouco da alma e do corpo. Ela ficou traste, nem sombra do que foi no passado. Era um sol que chegava no ocaso. Para ela a vida estava perdida. Tantos tentaram fazê-la feliz mas tiveram a mesma sorte que eu. Não sabiam que ela tinha nascido para outro. Se ela não tivesse na alma aquele fogo que a impelia a procurar a felicidade em tudo quanto é canto, poderia ter fingido. Teria sido feliz comigo. Mas nasceu para outro a quem nunca encontrou.
– E o que qui o sinhô fez?
– Aí eu me casei. Mas a felicidade nunca chegou perto. E enquanto procurei viver com o coração infeliz mas com dignidade, aquela a quem escolhi buscou a felicidade em outros braços. É claro que não a encontrou. Também ela tinha deixado algum dia o homem do seu coração passar e não percebeu. Aí fui seguir minha vida, aprender a viver sem amor, correr outros caminhos. Muito embora naquele tempo pensava poder ainda encontrar outro grande amor. Muitos anos passei com essa esperança, cuidando que em algum momento da vida encontraria a mulher dos meus sonhos. Meu fracasso no amor me deu lição de vida. Descobri que a grande sabedoria consiste em você perceber o momento exato em que passa o seu grande amor. Aqueles que perdem esse momento tentam remediar. Uns nunca se casam. Sublimam com outro tipo de amor, se dedicando a uma arte, a uma ciência ou a uma causa religiosa. Outros até que se casam mas não acham a felicidade e fazem mais uma pessoa infeliz. Há aqueles que têm coragem de reconhecer o erro e rompem com a situação do engano. Outros não. Vão até o fim da vida remando contra a correnteza e remoendo infelicidade a dois.
– E cumé qu’a gente sabe quem é o nosso grande amô?
– A gente não sabe, meu filho. A gente só sente. É preciso sensibilidade. Você não deve ter vendas nos olhos, tapumes nos ouvidos, peias nas pernas nem o coração atravancado. Deve estar livre. E um homem livre não pode querer prender ninguém. Deve deixar que as pessoas também sejam livres para a escolha de quem melhor lhes convier. Pode ser que você não seja o grande amor da Alzira, filho. Pode ser. Esta saudade que você está sentindo dela é um sinal de que seu coração está triste e arrependido, querendo arrego. Pode ser que ela seja a mulher do seu coração. Se você for o grande amor da sua vida, pode ter certeza de que ela também está sofrendo, só pensando em você, querendo você.
Aquele estranho trazendo paz ao coração de Lilico. Falando, bem falado, o que o moço precisava e queria ouvir. Ele que tinha vergonha de se expor, de mostrar sentimentos, estava se descobrindo para um desconhecido. Homem conseguindo tirar do íntimo do rapaz emoções nunca dantes confessadas. Lilico mesmo falava quase nada. Só dúvidas. Mas a cada dúvida apresentada era como se abrisse mais a sua vida para o estranho. Parece que o homem adivinhava coisas. Moço intrigado. Como é que aquele desconhecido sabia seu nome? Como sabia da Alzira? Como podia afirmar a saudade que seu coração sentia dela? Era homem sábio era. E aquele estranho que parecia não ser tão velho, sabia colocar sua experiência e seus conhecimentos à disposição dele. Lilico sentindo carinho por aquele visitante desconhecido de fala tão mansa e conhecimentos tão profundos. Rapaz começou a achar que já ouvira aquela voz. Num cantinho qualquer da sua mente havia uma lembrança mas o visitante continuou a falar antes que ela supitasse:
– Você já esperou uma semana, filho. É tempo de a raiva acabar, a consciência reaparecer e a razão ter vez. Veja bem. Se não for nada disso, se vocês não tiverem sido feitos um para o outro, por mais que você queira, vai achar o coração dela fechado. Ela já estará partindo novamente para encontrar o seu grande amor. Você pode ficar infeliz, muito ferido, sentir o mundo acabar ao seu redor, mas quando voltar à razão, quando as feridas se cicatrizarem e acabar a cegueira da paixão, verá que ela tomou a decisão acertada. Aí será a vez de você recomeçar a procurar a mulher da sua vida.
– Não. Num quero outro par não, meu sinhô! Alzira é o meu grande amô. É por ela que meu coração bate forte. Só ela apetece ao meu paladar.
– Então, filho! É hora de destravar o coração, deixar orgulho de lado. Vai falar com ela. Na vida, em muitas situações, principalmente em matéria de amor, você se arrepende é do que não fez. Não carregue esse arrependimento por toda a vida. Fale com ela! Querendo ou não você, vai admirá-lo mais por esse gesto. Ele não é sinal de fraqueza. É grandeza. É sabedoria.
Quem era aquele homem? Assunto estava tão rendoso que Lilico não queria interromper o andamento com perguntas inoportunas. Sentia necessidade intensa de sugar o máximo que podia do visitante tão sábio. Na sua mente, cada vez clareando mais, a lembrança daquela voz suave e compreensiva. Lilico tinha certeza de que já ouvira aquela voz. Quando? Quem era aquele bom homem que estava perdendo horas de sono para ensinar-lhe os caminhos do amor em plena madrugada? Com que interesse? Lilico tentou perguntar ao estranho mas repentinamente começou a se sentir cansado, torpor tomando conta de todo o corpo… tentou mas perdeu a luta contra o sono.
Acordou com desponte do sol. Orvalhado. Montão de vacas em redor pastando grama do campo, acompanhadas de anus, galos do campo e gaviões carcarás que se banqueteavam ora com carrapatos, ora com insetos que voavam à passagem delas. Curicacas agourentas soltavam seus gritos enquanto, aos pulos, catavam seus grilos. Primeira reação do rapaz foi procurar o estranho entre as vacas, atrás da velha igreja, em volta do campo. Não o viu mais. Quando já bem acordado, toda a potoca da noite passou-lhe pela mente. Lilico teve um leve estremecimento seguido de arrepios pelo corpo todo. A voz… o dono daquela voz tão suave, canção para seus ouvidos… lembrou-se de quem era. Ultima vez que a ouvira foi há exatos dezoito anos, naquele mesmo lugar, no miolo do campo, com os olhos cheios de lágrimas.
Lilico estava tranqüilo e em paz. Levantou resoluto e saiu em busca do grande amor da sua vida.
Uma semana depois recebe bilhete datado de 16 de outubro.
“Lilico. Seu pai morreu ontem à noite, por volta das dez horas. Seu grande sonho, depois de ter chegado à cidade grande e estudado bastante, era rever o filho que tanto amava, orientá-lo para a vida e explicar os motivos da sua ausência tão longa. Não pôde realizar o sonho mas, ao morrer, seus últimos pensamentos e palavras foram dirigidos a você. Posso dizer, como amigo que fui por vários anos, que seu pai sempre esteve em luta consigo mesmo, sempre teimando, procurando pela felicidade. Nunca desanimou. Sonhava encontrá-la nem que fosse na última curva do seu caminho. Ele agora deve tê-la encontrado. Receba o meu abraço. Um amigo.”