“Eu podia doar-me a uma causa mais justa.”
Era a mulher e o conflito dela, gritando os dois com vozes sufocadas dentro de uma prisão medonha. Tal desespero só vinha confirmar o que há tempo já havia se tornado evidente para os olhos mais sóbrios: o fim de um casamento.
O processo era irreversível e até os inertes móveis da casa sabiam disso. Em sua madeira escura, mogno do bom, eles foram permitindo que a poeira chegada de todas as direções do cosmo fosse aderindo às suas formas bem talhadas. Tornaram-se grisalhos e senis.
Madalena inclinou o peito sobre o porta-retrato e asfixiou o casal de noivos que ali sorria. Tão lindos! Tão de antigamente. A menina com seu rosto redondo e seus olhos cheios de ilusão. O vestido branco enorme, poesia em renda… parecia chegar de longe, bem de longe, de remotos arquivos da memória, alguns acordes de “Pompa e Circunstância”. O menino condensado num inusual fraque de aluguel, um príncipe. Que belo espetáculo teatral pode ser um casamento.
Os dois seres impressos na fina película pareciam remontar ao século XIV, quando então, às bem dotadas virgens e aos seus nobres pretendentes cabia apenas dizer “sim”, visto que o resto, suas famílias empurravam. Ninguém se preocupava mesmo com o que acontecia sob os lençóis daqueles castelos imensos. Jamais alguém pôde garantir que alguma daquelas beldades – ou até mesmo fealdades – chegou ao orgasmo, hoje tão em voga, na teoria.
Batendo de leve com o vidro do porta-retrato na quina da mesinha de centro, Madalena quebrou-o. Ficou ainda uns instantes a observar a fotografia – agora cara a cara – e depois não teve mais dúvidas, rasgou-a, picou-a em pedacinhos quase tão miúdos quanto a poeira que abundava por ali. Procurou o cesto de lixo e livrou-se do problema. Ao recolher os cacos espalhados sobre a mesinha, ela rasgou a carne da mão.
Dor horrorosa essa provocada por cacos de vidro. Mas se esse era o preço da liberdade, Madalena riu com escárnio, valia. No banheirinho da área de serviço, ela limpou o sangue do ferimento.
“Lavo-me com sangue. Purifico-me como uma santa.”
Ela sentia-se livre do laço sagrado e pronta, como nunca esteve antes, para recomeçar.
“Diana, a Caçadora”- Madalena volveu os olhos argutos ao redor. Quantos olhos! Eram pessoas das quais ela se privara durante muito tempo. Redescobrir as sensações de reencontrar corpos que ela pudesse tocar. “Quanto tempo! Você está ótimo. Beijos.” Entre tantos olhos, de repente algum par poderia luzir em sua direção, com brilho mais instantâneo que o das estrelas. Ela espreitava.
Mas o Passado Morto fazia-se de herói da resistência. Chegava da rua, suado, narinas dilatadas.
“Vem cá, Madalena, senta aqui no colinho. Vem cá pra eu bolinar você todinha.”
Nojento. Ela, dona de uma nova consciência, podia agora analisar os fatos com frieza, dissecá-los com bisturi. Como fora estúpida de se submeter anos a fio aos caprichos daquele homem amarfanhado, tão próximo do ordinário, cabelos penteados em excesso, o bigode da malandragem, coisa chã… odor acre de sexo. Só isso. O bruto resumia-se.
O discurso da trivialidade. Aquele homem jamais poderia ter inventado a poesia, aquele homem jamais poderia ter sentido a relva úmida sob seus pés às margens de um rio qualquer, aquele homem que tinha boca e que a beijara e a possuíra vezes incontáveis, perdera o direito de tocar até nas peças íntimas dela que balançavam indiferentes, ao sabor do vento, no varal da área de serviço.
Mas houve um dia… o dia do fim das trevas. O dia de aurora rósea como sonho de infância, com acordes redondos como avelãs, em que o próprio bruto provocou a revelação.
Ele trouxe um amigo da faculdade para estudar em casa. Criou-se uma situação embaraçosa, pois o amigo era na verdade “o homem”. O concreto da alma do amigo era ativo e penetrou nos poros de Madalena e arrepiou as cascas dos móveis, devolvendo às longínquas dimensões do cosmo a poeira pegajosa.
“Lambuze-se que é doce e bom.”
Espantada, Madalena olhou ao redor investigando para descobrir de onde vinha a sugestão, não soube de pronto, evidente. Soube mais tarde, quando já bebia da água translúcida e fresca da fonte na palma de sua própria mão.
Era a mulher e seu novo amor. Tantas luas primitivas de índio já se haviam passado entre a mulher e seu amante, que tornava-se impossível conter o casulo da realidade. Fazia-se indispensável rompê-lo já.
Madalena desferiu os golpes sem piedade:
– Sou mulher e sou amada. Não da maneira como você dizia me amar. Para você eu sempre fui apenas um pedaço de carne. É gostoso, Passado Morto, unir as carnes quando isso convém, mas eu queria mais!!! Quando você me julgava vencida, murcha e estéril, eu renasci. Note-me, veja-me farta, ofusque-se com o brilho dos meus olhos, sem culpas ou medos tolos. Não paguei para ter prazer, não esmolei e nem fui forçada a isso. Tive prazer e concebi. A trilha que eu sigo agora é estreita demais para suportar você. Fora! Fora da minha vida, Passado Morto!
Contrariando o que se podia imaginar, o Passado Morto saiu se arrastando pela mesma porta por onde entrava o Futuro Vivo. Era hora da troca da guarda.
Entrelaçados, Madalena e seu Futuro Vivo puderam saborear toda plenitude do recomeço.
O clero bem que tentou interceder. O clérigo coberto com o ranço de sua importância e reputação calcou com força os punhos na porta de Madalena.
– Adúltera! – Vociferou a vestimenta escura e agourenta com pedras na mão – Madalena! Volte atrás, mulher! Expulse o pecado de sua vida. – Depois com voz mais branda – Seu Passado Morto está disposto a lhe perdoar. Lave-se na água pura e abençoada do perdão e volte para o rebanho, volte a ostentar a cabeça erguida, sem a mancha putrefata do adultério.
Mas do que falava aquele homem? Que entendia ele de amor, de paixão? Que língua estranha falava aquela criatura. Putrefata era a hipocrisia.
– E o que eu faço com o bendito fruto? – Madalena desafiou-o arreganhando os dentes.
– Um filho impuro? – O santo ergueu-se possesso – Pois que essa criança morra a vir para este mundo manchada como está! – E saiu vociferando, blasfemando até, amaldiçoando como costumam fazer os derrotados.
Madalena calmamente fechou a porta de sua casa, acariciou distraída seu entumecido ventre e abriu a janela da sala por onde entraram finos fios dourados de luz. Era a luminosidade da bênção banhando a mulher e sua semente.
– Cresça, ventre! Cresça, semente escolhida! Abençoada seja, mulher de coragem. Você rompeu com a morte e inundou-se de vida. Aos ácaros do universo – o desprezo, aos capazes de romper casulos – a bênção.