Tá vendo aquilo ali? Ali, meio tapado pelo angoleiro, aqueles ferros, chapas enferrujadas, servindo de ninho pra gambá? Tá vendo?
Pois é. Aquilo ali era a condução da fazenda: uma perua amarela, bonita, que chegou aqui nova, lá por quarenta e nove ou cinqüenta, nem me alembro direito. Sei que era luxenta, bancos de couro macio, janelas de vidro, uma pala azul na frente, esquadrias de madeira envernizada, essas agora já carcomidas pelos cupins. Mas era forde ou chevrolé, ou seria doge? Não sei mais, mas era estrangeira, americana.
Em sábados, mas nem sempre, a cada quinzena ou mês, ia-se ao teatro na cidade, ou ao circo. Lotava-se a perua e ia todo mundo, meio apertado, verdade que espremidos. Mas iam todos, assim mesmo. Que teatro e circo não eram de se perder por nada deste mundo.
Eu, molecote, o muito uns seis anos, ia no colo, chiando, mas ia. Não entendia nada das peças e pantomimas, mas achava bonito. E havia doces, guaraná, até sorvete. Era uma festa.
Tornávamos à fazenda muito tarde. Em dia de chuva era dureza. A perua rebolava no lamaceiro da estrada. Vezes, não poucas, atolava. Aí era trabalheira. Desciam todos, calças arregaçadas, botinas descalçadas, e toca a empurrar. Houve que precisamos de possante junta de bois pra tirar a dita do atoleiro, mas no geral saía sozinha, na reduzida, jogando barro pra todo lado, salpicando a cara de uns, inutilizando camisas de missa… Mas saía!
Ah, me esquecia de falar do chofer, o Zé Hilário, um baiano muito alinhado, influído. O dito Zé das Moças, dado que era alvo dos muitos suspiros delas. Garboso na sua farda de chofer, que não tirava nem pra ir a enterro. Fazia questão absoluta de exibir sua patente de motorista, como um soldado.
Deu-se que a professora, dona Maria Laureana – solteirona, meio passada, mas ainda muito bonita, cabelos pretos, batom nos beiços – se enrabichou por ele. No começo, discretamente, olhares e jeitos. Depois às claras, mãos dadas, chamegos. E foi namoro, noivado de pouco tempo, e casavam-se. Meu pai foi padrinho do casório, com muito gosto, que dona Laureana era considerada já de casa.
Viera pra fazenda há um bom tempo, eu nunca soube direito de onde viera e nem porque era sozinha sendo tão bonita, além de estudada. Dizia-se até que tinha um irmão padre na Alta-Sorocabana. De raça fina, a dama.
Trouxera com ela um negrinho que era o diabo, espevitado, arteiro, meu comparsa de muita traquinagem. O Zezinho Preto, ou José, como ela queria que o chamássemos, nada de diminutivo e nenhuma referência à sua cor, que era um pretume só, azulego. Também se encrespava, depois de casada, quando nos referíamos ao seu então marido como Zé das Moças. Era senhor José Hilário, nada de apelidos.
Antes, ela comia em casa. Vinha, depois da aula, para o almoço, e fazia questão de nos ensinar os rudimentos do bom comportamento à mesa: lavar as mãos, usar garfo e faca, salada primeiro, comer de boca fechada, não falar de assuntos desagradáveis durante a refeição, essas coisas de gente cidadã, finezas…
Vezes em que se metia a dar palpites, a mais das suas competências, nas coisas da fazenda, na hora da janta. Era a conta! Meu pai se agastava, ouriçava:
– Dona Laureana, adesculpe, mas aqui tem serviço de pegar boi à unha, roçar pasto a foiçadas, adomar cavalo xucro e tirar quadra em cabo de enxada. Qual desses é de sua preferência? Que tá precisado de braço, isso tá! meu pai não deixava passar.
– O senhor me perdoe, eu só queria ajudar – ela, amuada, empinando o nariz, que mesmo se desculpando era altiva a dona.
– Pois ajuda, e muito, ensinando o bê-á-bá e as quatro contas às crianças. O resto deixe comigo – meu pai, taxativo.
Ela derrubava o beiço por alguns dias, comia em silêncio. Minha mãe, que sempre foi jeitosa, botava água morna no assunto, destemperava. E, depois, tudo voltava ao normal.
Meu pai gostava dela, até a consultava nalguma matéria, só não queria ninguém invadindo seus domínios. Tanto gostava, que fez questão fechada de que ela batizasse minha irmã mais nova. Comadre e compadre, nos respeitos, sem rusgas, daí em diante.
Mas casaram-se, dona Laureana e Zé das Moças, em boa festança. E tudo parecia ir bem demais. Zezinho Preto, que a chamava de madrinha, passou a chamar Zé das Moças de padrinho, e pendurou nele como filho. Onde ia, Zé das Moças levava o pretinho junto com ele. Dona Laureana fazia gosto. Aquilo, que no começo podia parecer um grupamento meio desparelhado, uma mulher mais velha, um moço e um negrinho estouvado, já era uma família bem composta.
Zé das Moças, no entanto, apesar de seu bem remunerado cargo de chofer, conseguia gastar mais do que ganhava. Comprava presentes caros para a esposa, finos regalos, enchia o Zezinho de brinquedos. Dona Laureana achava aquilo bonito, embora fosse um pouco preocupante o excesso de dispêndios. Mas atribuía tudo ao começo do casamento, demonstrações de afeto, obséquios. Com o correr do tempo, tudo se normalizaria.
Um dia, no entanto, Zezinho me segredou que, numa ida à cidade para buscar coisas para o patrão, aportara com Zé das Moças em uma casa cheia de moças. E lá, além de bebida, havia jogo de cartas e uma roleta muito bonita. Entraram e logo saíram, que Zé das Moças só chegara para pagar alguma coisa, parece que dívida. Ele pediu ao Zezinho que nada falasse à madrinha, que ela não precisava saber disso. Particulares de homem pra homem, aquilo unia mais padrinho e afilhado. – dizia sorrindo, piscando um olho daquele seu modo cativante. Cumplicidades.
E, tempo passando, Zé das Moças continuava o mesmo, cada vez mais guapo, parolando com seu jeito cantado, exibindo-se em boas roupas, na estica. Perfumes, águas de barba, e relógios de marca, anéis de bons quilates, além de amiudar a freqüência à casa das moças. Tanto, que lá já era conhecido como Zé Galinha. E recebido com vivas. E ainda havia o jogo, bebidas…
Dona Laureana vigiava, mas fechava um olho, afinal José Hilário era moço, pleno de energia e gosto, cheio de vida. Vezes em que sumia por dias seguidos, depois aparecia munido de muitos presentes, finório, convencedor, como se nada acontecido. Dona Laureana fazia de conta que, mas sofria, ia que se acabando devagar. Isso dava pra ver, mais que ela evitasse.
Jamais reclamou do marido, nunca! Mas se via no seu rosto rugas antes nunca percebidas, traços marcados. Cabelos tão pretos davam primeiros sinais de embranquecimento, esquecia o batom na gaveta, as unhas antes pintadas, agora gastas, os olhos inteligentes então mortiços.
Duma vez, veio ela ao meu pai, meio desajeitada, pedir um adiantamento de ordenado, que estava bem precisada. Meu pai achou aquilo meio espantoso. Ela sempre tivera lá suas boas economias, que pouco gastava, ganhava livre de casa e comida. No ordinário era ela a ajudar pessoas em precisão, nunca o contrário.
Meu pai concedeu, abriu a gaveta da mesa grande do escritório, contou o dinheiro no quanto pedido e estendeu a ela o maço, sem discutir. Fosse um camarada, questionaria destino e uso do dinheiro, ia querer saber onde e como o ordenado fora enfiado, não admitia extravagâncias. Que tinha ele o vezo de se ocupar disso, que peão às vezes carece de orientação nos procederes com dinheiro. Mas com ela era diferente.
Na saída, entretanto, esquecendo a valia do ditado velho, que em assunto de marido de mulher não se mete a colher, disse:
– Comadre, bem que não seja da minha conta, a senhora está se acabando à toa, esse seu marido não é coisa que se preze tanto, um traste! – disse num arranco, e logo se arrependeu.
– Pois, compadre, o senhor disse certo, isso é assunto que a mim compete. Cuide de suas vacas, que do meu marido sei eu.
Falou, e saiu pisando duro. Meu pai ficou ali, mastigando em seco o merecido troco. E nada mais foi dito.
No pouco tempo que correu depois, obra de dois ou três meses, Zé Hilário, das Moças, Galinha, foi se aprimorando nas farras. Extraviava-se por dias e dias, aparecia quando bem lhe dava na cabeça, portanto foi despedido do comando da perua. Vivia agora, definitivo, à sombra de dona Laureana, no bem-bom, na sua nova profissão de marido de professora.
Zezinho Preto, já mais crescido, acompanhava-o nos ires-e-vires. Gostando de tanto movimento, novidadeiro. Dona Laureana emagrecia feito uma rês que perdeu o bezerro. Dinheiro curto para as despesas do pródigo marido, vivia pendurada na venda e pagando contas das quais só tinha notícia quando a cobrança aparecia.
Sustentava o parasita no luxo, agüentava quieta a conversarada, a comadrice do povo. Entretanto, não dava ouvidos a nada, José Hilário inatacável, a professora não passava recibo aos seus desabonos. Até que ela ficou quebrada, jóias no prego da Caixa, empenhadas sem o seu conhecimento, pelo marido. O nome manchado na praça, ela que antes tinha créditos, até conta em banco, fé em casas comerciais… Sem mais recursos.
Fosse só uma questão de dinheiro, dívidas, era pouco. Isso ela de um jeito ou outro contornava. Vendia uma gleba que tinha de herança, lá na terra donde ela vinha. O que lhe importava era que Zé continuasse com ela, de qualquer modo.
E então o Zé das Moças mais uma vez desapareceu. Nem notícia, paradeiro nenhum. Ninguém sabia dele. Na certa encafuado em casa dalguma dona, usufruindo prazeres. Nos primeiros dias, normal. Esperava-se que aparecesse, com a cara lavada de sempre. Mas dias passaram-se, e nada de Zé das Moças comparecer. Aí é que se iniciaram as procuras ao desaparecido. Primeiro as perguntas de praxe na vizinhança, se alguém havia visto, se se sabia destino ou rumo do desinfeliz… nada! O homem parece nem existia, derretido no ar…
Dona Laureana imaginou tudo que é jeito de campear o sumido, até indo à Polícia. Vai ver algum marido, um credor, um desafeto, tinha dado cabo do traste! Quem sabe morto, enterrado, jogado num valo. Pensou até em botar no rádio. Mas, inútil tudo. Zé das Moças soverteu-se no mundo, com a roupa do corpo. Dona Laureana nunca admitiu que fora largada porque a fonte tinha secado, alguma coisa tinha acontecido ao marido, uma loucura, um desatino, coisa dessas. José Hilário, apesar de tudo, era pessoa muito delicada dizia sempre.
Até na casa das moças ela foi perguntar pelo marido, e se submeteu ao riso delas todas. Uma das tipas, no entanto, lhe disse, entre risadas, que ele prometia pôr o pé no mundo assim que findasse a boa vida.
Tentou achar parentes, mas como? Pouco sabia do marido, máximo que era baiano, mas nem sabia de que cidade, vila ou arraial…
Muitos anos se passaram. Ela deixou a fazenda e foi estabelecida pra escola da cidade. Zezinho Preto, sempre com ela, dando trabalho, cheio dos vícios e ensinamentos que havia recebido do extraviado padrinho.
Vez em vez, uma notícia: que Zé das Moças estava morto, que fora pra Bahia, que tinha lá outra família, casado no religioso e no civil, mulher e bando de filhos. Mas nada confirmado.
Dona Laureana, ainda é viva, oitenta e tantos, porte entanto nobre, cabelos brancos enrodilhados num coque. Nem viúva, nem casada, nem nada. Provável bígama.
Vez por outra aparece por aqui em carro alugado, visitar minha irmã, sua afilhada. Pretexto. E ela olha com uma ternura doída, uma lasquinha de esperança, essa ferraria velha, enferrujada, tão destruída… como a sua vida.