A Cabrocha

Sueli terminou de tirar a mesa posta para o café da manhã do marido e colocou sua xícara suja com o resto do café tomado ainda há pouco em cima da pia, juntamente com o restante da louça que ela teria de lavar. O marido, distraído, vestiu o paletó e murmurou um “tchau, querida” sem nem mesmo olhá-la. Sueli suspirou, cansada dessa rotina. Olhou em volta, para a casa ligeiramente em desordem, a cama por fazer, a pilha imensa de roupas para lavar e passar. Ainda tinha muita coisa a fazer até que o marido voltasse do trabalho no final do dia. Ela passaria o dia inteiro às voltas com as tarefas domésticas, ele chegaria pontualmente às sete horas, ela colocaria a mesa para o jantar, eles jantariam em silêncio; depois, enquanto ela lavava a louça e arrumava a cozinha, ele assistiria aos noticiários esportivos na televisão até o sono chegar. E então, iria pra cama em silêncio, resmungando entredentes algo sobre ter que acordar cedo no dia seguinte.
Era essa sua rotina de dona de casa.
Sueli suspirou profundamente, mais uma vez. Em sua testa havia pequenas gotas de suor, que escorriam lentamente e iam molhar a gola de seu vestido velho e desbotado, enquanto ela passava as roupas a ferro quente, com a habilidade de quem executa essa tarefa todos os dias. A temperatura altíssima do subúrbio no verão carioca, unida ao calor escaldante do ferro de passar roupa, fazia com que esse exercício doméstico se tornasse ainda mais insuportável. O pequeno radinho de pilha estava ligado no programa da rádio AM que costumava ouvir todos os dias. Adorava aquele programa, era sua maior distração durante o dia, que passava inteiramente sozinha. A voz do locutor era grave e suave e a fazia fantasiar sobre como ele seria fisicamente. Além do mais, ele sempre falava coisas interessantes, e de vez em quando havia entrevistas especialmente boas. Naquele dia, a entrevistada seria uma terapeuta sexual, que falaria sobre o casamento. Sueli terminou de passar a pilha de camisas do marido. Faltavam agora as calças e os pijamas. A voz da terapeuta no rádio saía estridente e fanhosa: “Você, minha amiga dona de casa, que está me ouvindo agora, sente-se entediada no seu casamento? Você passa o dia inteiro cuidando da casa, e quando seu marido chega, nem olha na sua cara?” Sueli enxugou a testa com as costas das mãos e dobrou com cuidado a calça que acabara de passar. “Você se sente desvalorizada pelo seu marido? Ele não lhe dá mais atenção?” Sueli terminou de passar a última calça. Agora, faltavam somente os pijamas. “Você está cansada dessa monotonia? Pois saiba que mudar sua vida depende somente de você, minha amiga!” Sueli piscou, prestando mais atenção na voz fanhosa. “Você pode mudar tudo isso, basta querer! Se quando ele chega em casa e encontra você suada, descabelada e com aquela roupa velha, não o culpe por não a olhar. Você tem que estar sempre linda e cheirosa para o seu marido, se quiser que ele lhe dê a atenção merecida.” Subitamente interessada, Sueli parou de passar o pijama, e ficou ouvindo atentamente. “Use sua criatividade, surpreenda seu marido. Aprenda a dança do ventre, vista-se sensualmente. Compre uma lingerie sexy, ou até mesmo uma fantasia sensual, de coelhinha, de pantera, de cabrocha. Vale tudo para dar um tempero a mais na sua relação. Arrume-se, perfume-se, e dance pra ele, quando ele chegar em casa cansado do trabalho no fim do dia. Te garanto que seu marido passará a te olhar com outros olhos, minha amiga dona de casa. Faça uma surpresa para o seu maridão, seja uma nova mulher e sua vida irá mudar para melhor! ”
O coração de Sueli bateu mais forte. Era isso! Era isso que ela precisava fazer: surpreender o marido, vestir-se de modo mais sedutor. Compraria uma calcinha vermelha e…Não, não, seria mais ousada! Compraria uma fantasia sensual, e vestiria pra ele. Dançaria e o seduziria com seus movimentos suaves e sua graça natural, que despertariam sua libido. Ele se surpreenderia agradavelmente com a sua performance. Só dependia dela mudar sua monótona vida de casada. Seus pensamentos foram interrompidos por um leve cheiro de queimado. Droga! Empolgara-se tanto com a emocionante idéia que se distraíra e acabara queimando a calça do pijama do marido. Desligou o ferro na tomada, abriu a lata de lixo e jogou a calça fora. O marido não iria notar mesmo, um pijama a mais, outro a menos, que diferença fazia? Ela pegou sua bolsa e saiu apressadamente rumo à primeira loja de fantasias que encontrasse pela frente.
Casualmente, havia uma na esquina de sua rua. Sueli nunca imaginou que um dia entraria numa loja como aquela. O estabelecimento estava repleto de roupas; a proximidade do Carnaval ajudava. Atrás de um balcão empoeirado, uma mocinha pintava as unhas das mãos com esmalte vermelho, enquanto mascava um chiclete de boca aberta, sem notar a presença da inusitada visitante. Constrangida por estar ali, em plena luz do dia, uma senhora respeitável como ela, o que os vizinhos diriam se a vissem lá? Ela apertou a bolsa nervosamente sobre o vasto busto, e gaguejou:
– P- por favor…Eu queria comprar uma fantasia.
A mocinha levantou os olhos do esmalte vermelho e olhou a nova cliente desinteressadamente.
– Temos várias, fofa. Qual fantasia que você quer?
Qual fantasia? Sueli não tinha pensado nisso. Qual fantasia escolher? Sentindo-se meio ridícula, ela falou:
– Errrr…Você tem…uma…de coelhinha?
– Coelhinha infelizmente acabou. É a mais procurada, sabe. Mas nós temos de arrumadeira, de bruxa…Não serve?
Arrumadeira? Arrumadeira era o que ela era todos os dias, não precisava de fantasia para tal. Bruxa? O que há de sensual numa bruxa? A vassoura?
Não, essas não serviam. Qual a outra fantasia que a terapeuta havia sugerido? Algo a ver com dança…Bailarina? Não, não. Ah sim…
– Você tem uma de cabrocha? Como aquelas roupas que as mulatas passistas usam no carnaval.
– Tenho sim. Qual tamanho, é pra você?
Sueli corou, envergonhada, e sentindo a necessidade de inventar uma desculpa esfarrapada que justificasse aquela compra.
– Não, imagina! ­ e deu um risinho nervoso com o canto da boca ­ É pra minha filha, sabe. Ela vai desfilar esse ano na Sapucaí, vai de passista mesmo. Sempre foi o sonho dela! Traz o maior tamanho que tiver, que ela é grande.
A mocinha ouviu sem interesse algum sua explicação e foi buscar a fantasia de cabrocha.
– Mais alguma coisa? São 35 reais.
– Não, obrigada, é só isso. Aqui está o dinheiro.
Sueli pegou a sacola atrapalhadamente e saiu da loja quase correndo, sob o olhar de desprezo da atendente. “Essas velhas…”, pensou a mocinha, voltando a pintar suas unhas distraidamente.
Chegou em casa pingando de calor e de nervosismo, da aventura que passara. “E agora?”, pensou. “Agora está feito.” Tomaria um banho, colocaria a fantasia e esperaria o marido chegar do trabalho. E assim o fez. Tirou a fantasia do embrulho e olhou-a atentamente pela primeira vez. A peça principal era um minúsculo biquíni de lantejoulas douradas. “Que calcinha mais indecente! Como as moças podem usar uma coisa dessas?” Decidiu que teria de colocar seus julgamentos morais de lado, se quisesse realmente ser uma mulher sensual para o marido. Havia ainda uma meia arrastão, e uma tiara cravejada de lantejoulas igualmente douradas e penas amarelas, para colocar na cabeça, compondo toda a roupa. “Se é que se pode chamar a isto de roupa”, pensou. Do sutiã do biquíni saíam franjas que rodeavam todo o busto. Gente, mas aquele biquíni era tão pequeno, e ela estava meio fora de forma. Será que caberia nele? Ah, ela esquecera de um detalhe muito importante: a sandália! Lembrou-se, aliviada, de uma sandália dourada que usara no casamento da cunhada há cinco anos atrás e que comprara a prazo. Aquela serviria.
Resolveu começar pela calcinha. Mas alguma coisa estava errada. Ela não passava das coxas! Não subia mais do que isso. Não era possível, a vendedora devia ter-lhe entregue o número errado. Olhou a etiqueta. Não, era G mesmo. O G era daquele tamanho?! Mas o que era isso, aquela fantasia deve ter sido feita para um feto! Puxou a calcinha mais uma vez, para cima, dessa vez com mais força. Passou das coxas. Pronto, agora era só ajustar a parte de trás…Nossa, a calcinha não escondia praticamente nada! Que indecência! Não teria coragem de usar aquilo nunca. Tirou a calcinha de lantejoula. Suspirou e lembrou da voz fanhosa da terapeuta dizendo: “Depende somente de você!”. Decidiu ir até o fim naquela maluquice. Colocou a meia arrastão. Ficou meio apertada, mas coube. Vestiu novamente a calcinha. Ajeitou-se o melhor que pôde, mas tinha carne demais sobrando. Sua barriga e seus quadris estavam espremidos naquele minúsculo pedaço de tecido. Resolveu continuar: pegou o sutiã e tentou colocá-lo. Impossível. Aquele era pelo menos dois números menor que o seu. Tentou relaxar a musculatura para encaixar o fecho. Nem assim conseguiu. Forçou mais um pouco, até quase arrebentar o fino bustiê. Ah, finalmente! Fechou! Respirou aliviada e percebeu que estava suada do esforço sobre-humano de vestir aquele traje mínimo e espalhafatoso. Olhou-se no espelho, e achou sua imagem meio ridícula. Seu busto quase pulava do sutiã justíssimo, e a calcinha apertava seus quadris. Os buraquinhos da meia arrastão afundavam nas suas coxas. Era preciso continuar. Ficou repetindo mentalmente, como um mantra, que estava sexy e adorável, e colocou as sandálias. Depois, a tiara. As penas caíam-lhe no rosto. Assoprou. Foram para o lado, parecendo executar uma dança macabra. Ajeitou o melhor que conseguiu. Para completar, pôs um batom vermelho ­ “a cor da paixão”, pensou ­ e algumas gotas do Cabochard falsificado que adquirira no Paraguai quando fôra fazer as compras do último natal. Pronto, conseguira. Ensaiou desastradamente alguns passos de samba. Desequilibrou-se em cima dos saltos altíssimos e quase caiu. Decidiu deixar a dança para quando o marido chegasse; era menos arriscado.
Sete horas em ponto, e ela ouviu a porta da sala se abrindo. No quarto, escondida e em silêncio como uma criminosa, ela pôde ouvir ainda o marido tirar o paletó e jogar-se no sofá, cansado, como fazia todos os dias. Era a hora. Ela tinha que entrar agora. Suspirou fundo e, tomando coragem, passou pela porta do quarto, sala adentro, tentando sambar como uma das mulatas do Sargentelli, mas se assemelhando mais a um bêbado que acabasse de levar um tiro pelas costas. O marido olhou-a assustado. Arregalou os olhos, abriu a boca, não acreditando no que estava vendo. “Mas o que é isso, mulher? Ficastes maluca?” Ela respondeu, ofegante, tentando sambar e fazer uma voz sensual ao mesmo tempo: “Não, meu amor…É pra você.” O rosto do marido começou a avermelhar-se, a ponto dela pensar que ele estava tendo um infarte. Mas não era um infarte. Ele explodiu repentinamente numa gargalhada estrondosa, num daqueles ataques de risos tão histéricos que tiram lágrimas dos olhos. E não conseguia mais parar de rir. De vez em quando ainda tentava parar e dizer alguma coisa; mas bastava olhar para ela e explodia numa sonora gargalhada novamente.
Sueli voltou para o quarto e jogou o radinho de pilha pela janela.