Renato estava com uma estranha doença que fazia com que a pele se descolasse por inteiro de seu corpo ao encostar em outros seres humanos. Ele podia segurar no colo sua gata persa e cor-de-rosa com listras azuis, mas se eu ou qualquer outra pessoa encostasse nele sua pele se descolava. Não nos víamos há tanto tempo, fiquei tão feliz ao encontrá-lo, afinal paramos de nos falar de uma maneira brusca e dolorosa. Sem mais nem menos, eu diria. – Acho melhor a gente dar um tempo- ele falou nos corredores da UFRJ como se fosse meu namorado. Dar um tempo, nunca vi amigos falando em dar um tempo. E eu passava tanto tempo com ele, mais tempo com ele que com minha namorada desses tempos – eu dormia com ele até. Como irmãos, é assim que dividíamos a mesma cama. O colo do Renato. O dia em que reli Anti-Nelson Rodrigues (li essa peça pela primeira vez aos catorze anos, e reli aos dezesseis) tive um acesso de choro no Rio Sul. Ele me abraçou e fomos olhar as vitrines. A nossa futilidade e consumismo era uma fuga, éramos tão apegados a roupas e estilo como eu nunca mais fui. Hoje em dia nem ligo. Naquela época eu adorava exibir o umbigo com dois piercings e o Renato adorava alisar minha barriga sempre à mostra. Ele mordia meus piercings e colocava a mão em minhas micro saias para ver qual era o tecido.
Eu deitava na cama dele enquanto ele tomava banho com a porta do banheiro aberta – e às vezes ele dançava em frente ao espelho, dava para ver quando eu deitava de frente para o banheiro. Renato. Renato era apaixonado pelo Júnior, eu não era apaixonada por ninguém. Tudo que tive até os dezoito anos foi paixão pelo sexo bizarro e pelos amores fraternais e isentos de atração física. Paixão pelos livros. Sonhos e mais sonhos. Perdas e decepções. Meus pais se divorciaram quase ao mesmo tempo que o Daniel se matou (eu estava chegando aos quinze anos) – não prestamos muita atenção uns aos outros. Parei de comer. Cortei as antigas relações. E então veio o Renato e a segunda namorada, quase simultâneo. Até hoje eu só me apaixonei por duas pessoas, uma aos dezoito e outra aos dezenove. E ontem eu sonhei com o Renato e com a garota de olhos verdes. O monstro pelo qual me apaixonei. Monstro de olhos verdes. Estávamos no sofá da casa do Renato, eu e a garota de olhos verdes. Renato numa poltrona acariciando a gata cor-de-rosa com listras azuis. Ele quis que eu sentasse no colo dele, mas e a doença de pele? Eu também queria colo. Fui, sentei, fechei os olhos e quando abri estávamos na varanda (uma varanda que nunca vi antes, a casa dele não tinha varanda). O monstro de olhos verdes continuava na sala.
Renato morreu na minha frente, a pele se descolando e eu não sentindo nada.
Nada, nada. No colo dele senti êxtase, e antes do colo senti euforia. Agora eu tapava o rosto com as mãos e não sentia nada. Quando senti que estava morto olhei bem para ele, caído no chão daquela varanda. E então acordei.