A Mão do Destino

Uma História com 5 dedos e uma Palma
Primeiro Dedo – O Polegar
Saiu batendo a porta com toda a força.
Repetiu sem pensar o mesmo gesto de sua Mãe, que deixando a casa, trancara o coração de seu Pai, plantando sonhos e pesadelos no peito de um rapaz atordoado.
Tudo isso só com uma batida de porta.
Um cachorro latiu.
Como que respondendo a um comentário, o jovem disse um palavrão e seguiu andando.
Pedras, grama, não pode pisar na grama, só nas pedras, depois; pedras portuguesas, vamos pisar só na parte branca, quem pisar na parte preta cai na água… cuidado, só ande onde pode!!!
O barulho ainda estava nos seus ouvidos.
Não, não o barulho de agora! A porta! A porta também batida por seu Pai, que estava agora sabe lá Deus aonde, as discussões, alguém tomando o lugar de sua Mãe, o papel do Pai, o da Mãe, outra mulher…
Ele ainda se lembrava do dia em que a sua Mãe…
Malas, sacolas, mais sacolas, sacolas, até mesmo as sacolas de plástico do supermercado, sacolas com sapatos, com roupas, sacolas e mais sacolas. Gritos e sacolas. Por fim o barulho da porta.
Silêncio.
O papo do Pai, de “vamos superar” de “vamos ser fortes”, ficou para trás, nunca superado. Agora era a vez dele ficar só, só, sem Mãe nem Pai, todos fora, fugiram, abandonaram, largaram, saíram sem deixar rastros, desapareceram.
Andava batendo os pés, evitando pensar muito sobre o porquê.
Vagarosamente ia se afastando de casa.
Meio fio, esquina, carros, sinal, vermelho, amarelo, verde, mãe, mãe, porque?
Parou. A idéia de morrer rodava sua cabeça. Com os pensamentos lá longe, ele levantou a mão. Preguiçosamente, o polegar se afastou dos outros dedos.
Então a mão se balançou e com o gesto característico dos caroneiros, o braço foi prá lá e prá cá. Alguém parou e abriu uma porta.
O carro andou.
Seu destino começava a mudar.
Segundo Dedo – O Indicador
Sim senhores Jurados, este homem, este desgraçado, este farrapo humano, este excremento da terra, este inqualificável, jogou fora a sua vergonha, jogou na lama a moral e os bons costumes, sim senhores…, estamos aqui, senhores jurados, para condenar este homem, por corrupção, por enriquecimento ilícito, por conspurcar uma profissão. A alegação da defesa de que o sócio fugiu, que ele não ficou com dinheiro algum, balela! Ora o sócio…, está bem claro que o réu tinha o conhecimento de tudo!
Sim senhores Jurados, como iremos provar, este desclassificado, este verme, este homúnculo, este …
Espere, esperem, parem, parem este homem…!!!!!
O pulo foi cinematográfico. Enquanto o Promotor apontava seu dedo e vociferava contra ele, os músculos de suas pernas, como molas, o impulsionaram diretamente por sobre o pequeno balcão de madeira.
Mãos se fecharam ao redor do pescoço, e, quando o homem deu um suspiro maior, o dedo indicador da mão direita, que até instantes atrás apontava e acusava, foi quebrado.
A peruca anelada e branca, caiu como algodão doce.
Correria, gritos, tiros, desmaios.
Novo pulo, uma arma tomada de um guarda, uma mulher histérica, um homem na frente, um empurrão, porta, porta e mais outra porta, depois o sol, o ar, a rua.
O carro passava em frente ao Fórum, ela dirigindo pensando em como a vida é efêmera, tinha visto um desastre há instantes e pensava : num instante vivo, noutro, esticado no asfalto quente, com a vida se esvaindo como água de uma pia.
Subitamente, a porta foi aberta com um puxão, o homem entrou, a arma parecia enorme, preta, brilhando de tão preta, parecia que no carro só tinha a arma, o cano, o furo do cano, o brilho…
Como que apertando alguma coisa, os dedos da mão se crisparam, o indicador se esticou e ficou completamente reto, a mão então também se esticou e apontando para fora a ordem foi dada. Ela saiu correndo.
O carro andou.
Seu destino começava a mudar.
Terceiro Dedo – O Médio
A campainha do telefone sem fio tocava feito uma sirene.
Lá do fundo do sonho, a ambulância pedia passagem, sai da frente, deixem a ambulância passar, saiam da frente, abram espaço…
Os dois olhos abriram ao mesmo tempo em que a consciência retornava. O telefone, a campainha, atender, apertar o botão, falar.
Alô, sim, sim, entendi, sim, sou a responsável, sim, é da minha irmã, claro, já vou, não, não estava dormindo não, claro senhor, estou indo, já já estarei aí…
Droga, droga, outra vez a escola chamando, droga, que droga, será que ela não podia ficar calminha na escola, que saco cuidar de filho dos outros, será que isso nunca vai acabar, será que é certo uma mãe abandonar seus filhos para os outros e ficar por aí, pomba, uma mulher não pode dormir até tarde num dia qualquer, puxa, que noite…
Escova, pasta, água, sabonete, água quente, mais sabonete, xampu, toalha, roupas.
Onde está o dinheiro para o Táxi, onde está a carteira, onde está a bolsa, que bagunça, onde está …
Senhora, esta mocinha é o perfeito exemplo da falta de educação; e a senhora também é responsável por isso, claro…, é na família que…, não, não senhora, não estamos lhe acusando, estamos apenas apresentando fatos…
Senhora, o seu comportamento está igual ao da sua filha, desculpe, da sua sobrinha, desculpe, já corrigi, calma, ou eu terei que pedir que a senhora se retire, saia por favor, saia, o caso da aluna será julgado pelo Conselho de Professores, como assim, o quê que é isso senhora…
Ainda tonta pela quantidade de álcool e sei lá mais o quê, consumidos na noite anterior, ela agora só pensava em sair dali, a moça apareceu sendo conduzida por um Bedel, uma discussão se iniciou, o Bedel saiu de perto, os palavrões corriam soltos de lado a lado.
Porta empurrada, vento no rosto, gritos, uma pontada, enxaqueca, pontos pretos, olhos doendo, ela se afastando, gritos, ameaças, vai, vai embora, vá e não volte, ingrata, vai, faça como a sua mãe, vai…
Não mexa nesse carro, largue esse cigarro, não abra essa porta, não, estou mandando, não sente aí, não, não mexa nisso, não, isso é contra a lei, não, abra a porta, menina saia já daí, largue o cigarro e saia já do carro, não…
O carro foi ligado rapidamente, trabalho de quem já tinha feito isso outras vezes, o ruído do motor sendo acionado sacudiu dentro da sua cabeça.
O braço foi colocado fora da janela do motorista; apoiado no vão da janela a mão girou sobre seu próprio eixo, alguns dedos se fecharam, o dedo médio se esticou fazendo o gesto obsceno.
O carro andou.
Seu destino começava a mudar.
Quarto Dedo – O Anular
As pequenas e multicoloridas flores do campo, que, presas na beiradinha de cada banco, ornamentavam a entrada da Igreja, foram as únicas a ficar caladas quando ela entrou. O OH! foi geral…
O vestido brilhava e deixava bem claro o cuidadoso preparo de tudo aquilo que ali acontecia.
Um pé depois do outro, a Marcha Nupcial sendo tocada dava um ar de respeito e solenidade ao evento. Crianças vestidas de branco faziam : lá lá lá, como pequenos pássaros, uma chuva de pétalas de rosa começou a cair, o coração do noivo disparou, o Padre ajeitou seus paramentos, uma madrinha apertando a almofada com as alianças, não sabia o que fazer.
Silêncio, só a voz grave e com um forte sotaque se ouvia : O senhor esteja convóssco, todos respondiam : Ele está no meio de nós…
O noivo encarava o Padre tremendo de emoção, as palavras saíam com a velocidade de quem as sabia de cor, o Noivo as repetia em pensamento.
As alianças já estavam colocadas, as mãos suavam, o Padre, com o seu balé estático terminava a frase: … ou cale-se para sempre…!!
Pode beijar a Noiva? posso? já acabou?
Como uma criança levantando a saia da mãe, o véu foi suspenso. A respiração de todos também, o Padre sorria, as flores cheiravam, a música chegava ao seu apogeu, a aliança novinha brilhava, os lábios se armaram para o beijo.
Não, não posso, isso já foi longe demais, chega, basta, isso é uma farsa, não, não!!!
As lágrimas acompanhavam o ritmo da música, o véu foi jogado para trás, a cauda do vestido foi puxada e enrolada de uma só vez, os sapatos combinando com o vestido apareceram e começaram a se mover.
Mármore, flores, véu, rostos, gritos, volte, pare, louca, o sol lá fora bateu direto no rosto cheio de maquiagem, o buquê caiu ao chão, a escada, os sapatos, o salto do sapato, a gritaria.
Com um puxão a grinalda foi para o ar; com outro a saia se dividiu, com mais um a porta de uma limusine estacionada ali perto se abriu, com mais outro o motorista foi puxado para fora do carro.
O botão do rádio foi apertado, a música encheu o vazio, a mão direita dirigiu-se para a esquerda, que segurava o volante, três dedos envolveram outro e começaram a puxar a aliança; começou a machucar.
A cabeça se sacudia enquanto as mãos se moviam com força tentando fazer o anel sair, pessoas se aproximavam, o rádio tocava, o motor funcionava, o dedo doía.
A mão se levantou, o dedo entrou dentro da boca, os dentes da frente se fecharam em torno dele, a cabeça se balançava em novo ritmo, o dedo doía mais, o anel saiu e foi cuspido fora, o dedo anular sangrava.
O carro andou.
Seu destino começava a mudar.
Quinto Dedo – O Mínimo
A Babá segurava as duas meninas, segurava e olhava para todos os lados, era um cruzamento muito perigoso, carros vinham de todos os lados, era muita responsabilidade sair para passear com filho dos outros, mas, era a sua profissão…
Vamos para o shopping, não, vamos para a pracinha, não, não…
Chega de conversa, a sua mãe mandou…
Vento, maresia, cheiro da gasolina que vinha do posto na esquina, o sinal, a buzina do carro que passava pertinho.
As meninas começaram uma enorme discussão a respeito de onde ir, na verdade a discussão era apenas uma brincadeira, o importante para as duas amiguinhas era estarem juntas.
O sinal fechou para um lado, fechou para o outro, de mais um dos quatro lados que formavam aquela encruzilhada o sinal abriu, do último lado também, os carros começaram a se movimentar, as meninas seguiam falando, a Babá largou a mão de uma delas, a outra correu atrás.
Pára, volta, vem cá você também, ei, não corra.
A Babá parou assustada.
As meninas pararam no meio exato do cruzamento.
A discussão continuava, tem um filme passando lá no shopping, quero a pipoca da pracinha, não, vamos para o cinema, não, vamos para o parquinho…
Uma das meninas fechou os olhos e estendendo a mãozinha fechou todos os dedos menos o menor, esticou a mão e pediu para a outra : troca de mal, pega no dedo e troca de mal, tá bom, se você quer, disse a coleguinha, e sem ligar a mínima para os carros que buzinavam e seguiam passando, esticou também seu dedinho fechando os olhos.
Os outros sinais abriram.
Por favor parem!, as crianças!, os carros, parem, parem…
Os dedos se encontraram no momento exato em que 4 carros vindos cada um de uma das ruas, se desviaram delas e bateram uns nos outros, com um ruído de ferro retorcido.
Vidro, metal, poeira, óleo, borracha.
Os carros, engalfinhados como participantes de uma briga; se encaixavam uns nos outros como se tivessem nascido assim, os encaixes eram perfeitos dentro da confusão. Um dos carros parecia que não queria parar, balançou, balançou, se ajeitou e…
O carro andou um pouco para longe da cena e parou.
O destino de todos estava em plena mudança..
Palma da Mão – União dos Cinco Dedos
De dentro do carro mais comprido saiu uma mulher vestida de noiva, com um corte na testa, ela estava tonta com o ocorrido.
O carro que seguiu andando tinha uma pessoa na direção, que fugiu assim que tudo parou, ele corria enquanto um rapaz que estava ainda lá dentro pedia ajuda.
O primeiro carro a bater ficou pendurado em outro, abrir a porta estava difícil, por isso a moça meteu os dois pés pela janela e saiu.
O último carro envolvido tinha um homem na direção, sua cabeça estava encostada no volante e com a pressão a buzina tinha disparado; uma arma estava caída no chão.
As duas menininhas que milagrosamente não sofreram nada, estavam paradas, congeladas, petrificadas, com os dedinhos encostados e os olhinhos fechados.
Ao barulhão que parecia nunca mais acabar, seguiu-se um silêncio total.
1, 2, 3, 4, 5 segundos.
Na clareira entre os carros, estavam agora os quatro envolvidos no acidente e as meninas. A Babá correu, entrou no meio deles, empurrou, reclamou e recolheu as meninas. Antes que juntasse mais gente tratou de cair fora.
Sobraram a moça, o rapaz, o homem e a mulher.
A rapaz olhando a moça, falou: você???
A homem olhando o rapaz, falou: Meu filho!
A mulher chorando e beijando o homem, falou: não te disse, estou aqui, sou tua!!
A moça olhando a mulher, falou: mamãe, mamãe!
O homem olhando a mulher, falou: minha querida, meu amor!
A mulher acariciando os cabelos da moça, falou: juntas, finalmente!
A moça abraçando o rapaz falou: você não fez nenhuma besteira, graças a Deus!!!
O rapaz chorando no ombro da mulher falou: você merece, fique com ele; conosco!
E a turma que se amontoava ao redor do desastre se entreolhava, os que estavam chegando perguntavam, como foi, quem morreu, como aconteceu, de quem é a culpa, porque eles estão todos chorando e se abraçando, porque, como foi? Estavam todos sem entender.
Eu disse todos?
Todos sim, nós também.
Pois conhecemos parte das histórias, mas não estamos entendendo nada.
Bem, se pararmos para pensar, poderemos supor, poderemos imaginar que…, bem, dá para deduzir que…, bem, é claro que se o rapaz e a moça…, bem, quanto à mulher, bom…, o homem…