E não é que o Jacinto resolveu ir para Belzonte tentar ganhar a vida?
– Vida custosa demais da conta, muié! Quem sabe na capitá arranjo coisa mió, né?
E foi, não sem antes reunir filhos, dar conselhos e tirar o atraso com a Maria encantoando-a na cozinha em hora que a molecada tava lá pros fundos.
– Credo, Jacinto, parece que tá tarado!…
– Ói, muié, a gente vai ficá longe, tem que privini, dexá e levá sodade, sá!
Na capital, Jacinto não se deu bem. Zunhou praqui e prali, comeu do pão que o diabo amassou, lambeu beira de pinico e acabou com os cobrinhos que tinha. Menos o da passagem, claro, bem guardadinho na gibeira da cuequinha surrada.
– Mode ladrão não pegá!
No dia em que Jacinto não tinha mais como não ir embora, sem destino, igual merda n’água, só com a roupa do corpo, encontra na rodoviária um locutor de rádio. Transmitindo para o Brasil e o mundo. E o locutor vem direto pro Jacinto, quase enfiando aquele negócio na boca do nosso herói.
– Boa tarde! Como é o nome do senhor?
– É Jacinto, moço!…
– Jacinto de quê?
– Jacinto Pinto Aquino Rego…
– Taí, minha gente! Um legítimo representante do povo brasileiro, mãos calejadas, pés descalços, falhas nos dentes…
Jacinto começou a ficar preocupado vendo o homem descrevê-lo em minúcias, quase engolindo aquele aparelho. Tava assim mais desconfiado que cachorro no meio da mudança. Pensou em reclamar mas achou que não tinha direito e calou-se. O locutor, depois de muito lero-lero, voltou a atacar.
– Senhor Jacinto, o senhor quer ganhar um prêmio?
Jacinto até esfriou a barriga nessa hora. Prêmio? De graça? É comigo mesmo! – pensou ele.
– É craro!
– Senhor Jacinto, aviso-lhe que o senhor está prestes a se tornar uma pessoa famosa!
– E daí? E o negóço do prêmio?
– Sim, senhor Jacinto! O prêmio! Para ganhá-lo, basta responder a uma pergunta. Apenas uma pergunta.
Jacinto pensou. É muita areia pro meu caminhãozinho! Uma perguntinha só? Não. Tem treta aí… só pode!…
– É pergunta difícil, moço? Perdo se eu errá?
– Não, senhor Jacinto! É muito fácil! É sobre a sua vida!
– Sobre minha vida? E isso vale dinheiro? Desde quando isso vale alguma coisa?
– Senhor Jacinto, não é bem dinheiro! O senhor pode ganhar uma passagem de ida e volta, de avião, a qualquer lugar do Brasil, com direito a acompanhante!
Rapidamente Jacinto procurou no mapa da mente um lugar aonde ir levando sua amada. De avião. Ele, de terno com gravata e ela, de vestidão… sendo respeitado e reverenciado por todo lugar onde passasse… comendo bife e batata frita com macarronada e bebendo guaraná e cerveja gelada… dormindo em colchão de mola… em Manaus… não. Manaus não. Em Pernambuco… Pernambuco não. Era cidade muito longe… Jacinto foi escolhendo e cortando cidades da sua lista, até que ficou com Tabuí mesmo. Isto! Tabuí! Já pensou eu chegar lá de avião? É a glória. Quando ele sorria de orelha a orelha, recebe um cutucão do locutor.
– E então, senhor Jacinto?
– Heim? O quê?
– O senhor topa participar do nosso concurso e responder nossa pergunta?
– Manda brasa!
– Então lá vai. O senhor se lembra da última vez em que fez sexo? Com quem foi e onde foi?
Jacinto engoliu seco e ficou meio engasgado.
– Não se afobe, senhor Jacinto! Os ouvintes, no Brasil e no mundo, estão atentos, querendo ouvir sua resposta. Pense um pouco!…
Aí o locutor deu aquela risada que não humilha ninguém. Só deixa o entrevistado com vontade de enfiar a cabeça num buraco. Pediu água pro Jacinto quando chamou os comerciais.
– E então, Jacinto, vai ou não vai responder? Lembre-se da viagem que você pode fazer…
– Vô sim. Vô respondê!…
Dois minutos de reclame e tá de novo o locutor grudunhado no microfone.
– Senhor Jacinto! O senhor tem um minuto para a resposta!
E Jacinto respondeu.
– Eu se lembro sim. Foi com minha muié!… Lá em Tabuí!
– Muito bem, senhor Jacinto! Faltou um detalhe: onde foi?
– Mas tem que falá até isso?
– Tem, senhor Jacinto! Veja bem: são duas passagens para qualquer lugar do país…
Jacinto pensou na glória de chegar de avião em Tabuí. Venderia a passagem da mulher, compraria seu terno e gravata, uns presentes pra molecada e singraria os céus nos duzentos quilômetros até Tabuí…
– Bão!… foi na minha casa!…
– Sim, senhor Jacinto, a gente já desconfiava disso! Na sua casa, mas em que lugar da casa?
Jacinto pensou, virou, mexeu… viu que não tinha escapatória.
– Foi na cu-cunzinha!… – desengasgou Jacinto.
Nesse momento, alívio nos corações de muitos brasileiras e brasileiros, com o ouvido pregado no rádio. Alívio e risinhos safados de norte a sul.
– E agora, moço? Quedê a passage?
– Ainda não, senhor Jacinto! Falta um detalhe. Precisamos saber se o senhor falou a verdade. Temos que perguntar à sua mulher para confirmar a história.
– Meu Deus do céu! Ondé que fui amarrá minha égua? E tá todo mundo ouvino? Lá em Tabuí tamém? Maria vai me matá!…
– Está, senhor Jacinto! O Brasil e o mundo estão nos ouvindo. Escreve aí o telefone e o nome de sua esposa. Vamos ligar para ela!
Jacinto tinha, lá na algibeira da cueca, para emergências, o telefone da cadeia municipal. Pertinho de casa. Com o coração aflito passou o número para o locutor, que foi logo mandando providenciar a ligação durante os reclames.
– Deixa eu falá c’o’ela primeiro, moço!
– Não, Jacinto! É contra as regras do programa!
Não demorou dois minutos, o povo da cadeia municipal, ouvintes assíduos daquele programa tão cultural, já tava com a Maria ao pé do telefone, sôfrega, esperando a ligação do Jacinto. Cada um com o risinho represado, mais sem-vergonha que o outro. Telefone toca. Maria atende.
– É a Maria sim! Maria, muié do Jacinto!
– Dona Maria! Eu sou locutor do programa “Viagem pelas Estrelas”! Seu marido está aqui, quase ganhando um prêmio. Só falta a confirmação da senhora! Se a senhora confirmar, ele vai ganhar passagem a qualquer lugar do Brasil, com direito a acompanhante…
Maria cresceu os olhos. E sonhou viajando de navio de Belzonte para Belém, junto com o Jacinto. Mataria dois coelhos, aliás, dois sonhos, de uma só vez: viajar de navio e conhecer Belém, a cidade onde Jesus nasceu…
– A senhora confirma, dona Maria?
– Confirmá o quê, moço?
– Eu vou fazer uma pergunta. Se a senhora responder o mesmo que o senhor Jacinto, ele ganha a viagem!…
– Então tá. Pode falá!
– Dona Maria, com quem, quando e onde a senhora fez sexo pela última vez?
No ar, os ouvintes perceberam a barulheira do telefone caindo no chão. Maria, pega de surpresa, arrumou uma tremedeira que a platéia de uns quinze pares de olhos da cadeia municipal pensou que ela ia ter um troço.
– Pega o telefone, dona Maria!
Era o locutor. Mas a ordem ela ouviu no rádio, do cabo Assunção, ligado no último volume. Maria queria sumir do mundo. Entrara numa enrascada… três soldados olhando para ela, dois presos, três bêbados, a namorada de um soldado, a amante do outro, a mulher do delegado e uns sapos… Maria arrumou gagueira para acompanhar a tremedeira. Suadeira também.
– Virge Maria, moço! Que pergunta mais boba!
– Olha, dona Maria, a senhora pode viajar para qualquer lugar do Brasil!… pense bem!
– Moço, isso não é pergunta fazê pruma muié direita! Cruizcredo! Cadê o Jacinto? Chama esse safado aí!
– Senhor Jacinto, fala pra ela que é coisa simples! É só ela responder o que perguntei!…
– Muié!… Maria! Tão bão, bem?… Fala pra ele! Pofalá!… Já contei prele memo! É só ocê confirmá, sá!
– Então, dona Maria! Quando foi, com quem foi e onde foi que a senhora fez sexo pela última vez?
– Jacinto disgraçado!… quando foi? Seja o que Deus quisé! Tem mais de um mês, moço! Foi com o Jacinto, uai! Eu, heim? Parece que bebe!?
O locutor soltou uma gargalhada. Ouvintes atentos, ouvidos colados no rádio. Povo da cadeia municipal, privilegiado, aumentando a platéia. Cutucando um no outro. Risinho no canto da boca. Piscadelas sutis. Maria suando por tudo quanto é poro. Aliviada com a resposta que deu…
– Dona Maria, faltou uma coisinha para vocês ganharem o prêmio! Onde foi?
– Não, moço, isso num falo não!…
– Fala, dona Maria! Só falta isso! Pense na viagem que a senhora, decerto, nunca fez!…
– Falo não! Hum, hum!…
– Maria! É ieu, o Jacinto! Fala, muié! Dexa de sê boba! Pocontá! Tem nada dimais não!
– É isso mesmo, dona Maria! Todo mundo faz isso! A senhora não vai contar nenhuma novidade!
– Hum, hum!… falo não!
Em todo o país os ouvintes podiam ouvir um coro, captado pelo telefone: “fala! Fala! Fala!”. Era a galera da cadeia municipal torcendo pela Maria com o Jacinto e querendo saber mais da intimidade dos dois. A mulher do delegado até já pensava em pedir à Câmara Municipal diploma de honra ao mérito para o casal que tava levando o nome de Tabuí para o mundo…
– Dona Maria, a senhora só vai confirmar o que o senhor Jacinto já falou para todo o país! Não será nenhuma novidade para o Brasil! Fala, dona Maria!
– Jacinto, sõ fiedaputa! Cê foi contá aquilo?
– Muié, é só dizê ondé que foi, sá!
– Dona Maria, a senhora gostaria de ir para qual cidade do Brasil se ganhasse o prêmio?
– Pra Belém, uai!
– Por que Belém, dona Maria?
– Queria conhecê o lugá ondé que Jesuis, nosso sinhô, nasceu, uai!
– Muito bem, dona Maria! Motivo muito justo e santo! Sonhe com a senhora fazendo a viagem, dona Maria e diga: em que lugar foi que a senhora fez sexo a última vez?
– Digo não! Cê besta, sô!
– Muié, diz aí, sá! E, óia, tõ me arrumano pra ir pra casa! Morreno de sodade, sá!
– Onde foi, dona Maria?
Momentos de silêncio. Maria pensando. Jacinto tremendo de emoção. O locutor, também reprovado em geografia, na terceira série, esperando. Povinho da cadeia municipal torcendo: “fala! Fala! Fala!”.
Aí o locutor, doido para dar o prêmio pros dois, resolve dar mais uma força.
– Dona Maria! É só a senhora completar o que vou falar. Se completar, ganha o prêmio! A senhora já disse que foi com o senhor Jacinto e em Tabuí… falta dizer onde. Todo mundo já sabe. Só falta a senhora confirmar…
– Silêncio geral. Suspense. Maria era tremedeira e sonhos…
– Completa aí, dona Maria! Foi na cu…….
– Ondé? Ô doido, sô! Num falo isso nem vê!… E num é na, é no!… ai, meu Deus do céu!… tá bão! Seja o que Deus quisé!
E Maria resolveu desembuchar. Vontade de ganhar aquela viagem era grande demais da conta. Encheu os peitos de certa coragem, empapou mais a roupa de suor, tremeu igual vara verde e, gaguejando feito gago legítimo, falou bem baixinho para todo o país ouvir:
– Fo-foi no-no tra-tra-zeiro, no trazeiro!… Jacinto disgraçado!
Locutor chama os comerciais rapidinho.
Ganharam o prêmio. Feita a vontade de Maria que conheceu Belém errada. Mas Jacinto ganhou seu terno e gravata.