1ª Parte
É dia de festa. Por todos os cantos, a cidade transpira uma força febril, que irradia de todos os cantos, fazendo com que os momentos difíceis do dia daquelas pessoas se transformassem em coisas pequenas, insignificantes diante dos acontecimentos que haveriam de se suceder. Por toda parte, crianças, jovens, adultos e velhos transpiram felicidade – e transpiração era a palavra de ordem que acontecia, visto que, naquela tarde, em uma pequena cidade do interior da Espanha, fervia o interesse pelo grande acontecimento do ano: a tourada anual que o senhor das terras promovia para agradecer à Virgem mais um ano de glórias para seu povo. E, naquele momento, todos os caminhos e olhares conduziam ao principal templo de toda aquela festa: a arena.
Sim, a arena. O local onde o homem se transforma em deus, lutando pelos carinhos e vontades, submetendo a natureza vil ao seu pulso, transformando-a em um toque, tornando-se forte o suficiente para vencer a batalha com as forças do vento, e a chuva que cai, e os bichos que afagam – ao mesmo tempo que matam, com fúria mortal. Nesse lugar, onde o pulso de um povo inteiro se sente, surge o herói que, por alguns instantes, representará os anseios da turba de ser forte, pelo menos uma vez a cada ano, para mostrar que a fúria das bestas de nada valem contra a força do homem e o temor de Deus.
Súbito, silêncio. Entra na arena o touro, a besta-fera que, treinada dias e dias somente para matar, espera, ansiosa, o momento de fazer mais uma de suas vítimas fatais, torpedeada por seus chifres descomunais e seu ódio por aqueles que o prendiam assim. Entre vaias, a besta se assusta, pois quer lutar, lutar pela liberdade, e pelo direito de vida, e de morte.
Quem desafiará a fera ? Essa era a questão, e eis que, para respondê-la, surge, envolto em uma aura de ser superior, um homem de graciosos traços e belas feições, montado em seu cavalo negro, ladeado por outros, tão valentes quanto ele – e que se admiram de seu poder. A platéia urra de alegria, pois chegara o homem que dominaria a fera, e ao qual todos temiam, e tinham medo de sua fúria, pois esse homem era o toureiro, esperado por todos como o escolhido para domar a fera, e submetê-la aos seus desígnios, acima dos animais, acima das bestas, ao lado do Rei e pela glória de seu povo – dando alegrias aos que o queriam bem.
Besta e fera, homem e animal, fúria e inteligência, astúcia e força. Pouco faltaria para vermos o combate que todos esperavam. Antes, porém, o bravo olha para o lado, para a tribuna de honra, e avista uma donzela, tão formosa quanto a lua da noite, tão clara e alva quanto a mais pura neve, tão linda e poderosa em seu vestido de gala, maravilhosa como a brisa fresca, e como o sol da manhã, que se avista de longe, de tão lindo que é, e que cativava o homem, que ainda jurava ter alguém para si, como ele queria.
Desce do cavalo, saem todos … e inicia-se a peleja. O animal, antes preso, é solto, e desfere chifradas num ritmo alucinante, urrando para todos os lados, até que encontra o objetivo de sua batalha. Arremete contra o toureiro em fortíssima carreira, visto que sua capa vermelha lhe soava como a última das humilhações que teria que passar. O toureiro, por sua vez, brandia o manto, provocando-o com tamanha rispidez. Antes, porém, que o touro consiga acertá-lo, desvia-se, no qual é ovacionado pela turba com um sonoro: “Olé!”.
Uma, duas, três, várias vezes o touro gira, e o toureiro consegue controlá-lo, estocando-o, às vezes, de leve, com sua espada. Chegam-se alguns com bandeiras – para espetar o touro, enfraquecendo-o – mas uma voz de ordem se ouve:
– Deixem-no. Ele é meu!
A turba silencia. Poderia aquele homem, sozinho, matar um touro dezenas de vezes mais forte do que ele, sem ajuda, sem ninguém, sem nada mais do que aquela capa e espada que já se tornavam empoeiradas pelo vento ? Poderia ser ele tão forte assim ? Seria maluco, ou valente, pensavam todos ? Não importava, pois o touro, munido de suas últimas forças, de novo se lançava, ferozmente, naquela que talvez seria sua última corrida, para a vida ou para a morte, alçando quase vôo na arena da cidade.
O toureiro espera, tranquilamente. E o touro vem.
O touro se aproxima, ferozmente. E o toureiro, lá.
O touro finalmente chega, e quando prepara-se para o golpe fatal … um ruído de espada, firme no coração, o faz parar, com sua cabeça a apenas poucos dedos do peito do toureiro. O touro dá um passo, desfalece … e cai.
A turba grita com a fúria de milhões. O toureiro vencia. A força era subestimada pela inteligência. Rosas eram jogadas, em todos os lados, como prova de gratidão pela vitória. Mas nesse instante, o bravo homem só tem olhos para um lugar: aquela tribuna, onde a donzela o olhava com ar de satisfação … e sorria, para ele, que estava certo de ter vencido a primeira grande batalha de sua jornada – mas que, no entanto, faltava-lhe aquilo que tanto queria ali.
2ª parte
É noite. Faz um pouco de frio, mas a cidade ainda está quente, fervendo de emoção pelo que se sucedera àquela tarde. O grande herói do dia, o toureiro, está sendo homenageado na praça principal. O povo, tomado de grande emoção, vê o bravo homem receber do chefe da cidade um prêmio por sua destreza naquele dia: um punhal, cravejado de brilhantes, e cujo aço reluzia como a mais pura expressão de força, dado somente aos grandes valentes que provaram sua firmeza enquanto homens, e machos, e fortes – e por isso a população estava lá, para homenagear aquele homem que lhes proporcionara, talvez, o melhor momento de suas vidas – sim, porque todos gostariam, não importa como, de destruir os touros que os assolavam, ou a peste que matava, ou ao demônio que combatiam dentro de si.
Começa a grandiosa festa. Os homens se embebedam, as mulheres conversam, as crianças saltitam de canto a canto, demonstrando sua alegria pela festa que existia e aproveitando os poucos momentos que ainda teriam antes que o dia findasse. Quando a celebração se encerra, pessoas felizes vão para suas casas, onde dormirão, esperando o grande dia de trabalho que viria a seguir, como tantos outros que teriam no futuro.
A noite cai como breu na grande casa, no centro da vila, onde está nosso homem. Durante toda a festa, não deixava de olhar a formosa donzela, linda como a noite e deslumbrante como o sol, que também o fitava. Deitado na cama, insone, tentava pensar em qualquer outra coisa – mas, no que quer que pensasse, a figura daquela mulher voltava, e o consumia em brasas, e o fazia querê-la, como chama que acende, como rio que corre, querendo as margens e querendo o mar …
Estava nesse pensamento quando ouve alguns passos, aproximando-se do quarto. Saca da espada, pensando ser algum inimigo, como tantos que combatera antes de chegar até ali. Mas o que vira era espantoso: a porta se abre, e a donzela ali entra, como se já soubesse que ele estava lá.
Olham-se num instante. Levanta-se o homem, cobrindo-se, pois está nu (a noite é quente, e não se vê nada), como que perguntando-se porque ela estaria ali. Aproxima-se dela, que não se retém – pelo contrário, pedindo que se chegasse. E então, sabe-se lá porque motivo ou razão, a beija grandiosamente.
Nesse momento um espírito forte toma conta da sala. A moça, vestida, solta o cordão que prende seu gracioso vestido, que não trocara ainda. O vento, feroz, assiste ao homem tomando-a com fúria, arrebatando-a com graça, rompendo os pendões que o separavam do contato físico com aquele corpo divinal, usando o punhal para rasgar dela a última peça que ainda restava de seu próprio pudor, tornando-a livre para amá-lo, ferozmente.
E o que se viu foram instantes de fúria, lobos uivantes, paixão incontida, tensão lancinante, orgasmo voraz, tudo consumindo, ao corpo e a alma, como se fosse um touro correndo por sangue, procurando um homem, lutando com força para seduzir, de corpo e alma, a paixão que viria a ser sua – e que correspondia, em espasmos banais, como grande leoa, gemendo e gritando, procurando seu amado leão.
Sofrendo, gemendo, vibrando, ambos correm e suam, como se aquilo fosse a arena da tarde. E então, forte como o sol, firme como a noite, grande como a força de dois seres que se unem, chega o ápice – e então, desfalecem, cumprida a missão.
Manhã do dia seguinte. O sol está a pino, e as pessoas trabalham, como sempre trabalharam durante todo o tempo. Nada mais se ouve da festa de outrora – hoje, apenas lembranças soam daquele dia, como alentos para o duro serviço que se está por fazer.
O toureiro prepara-se para partir. Jamais imaginara ter passado por tudo aquilo. Recebera muitos prêmios por sua audácia – a gratidão de todos, a promessa de um homem, a força interna. Mas, acima de tudo, queria saber se realmente receberia o que pediu. E, quando viu o lenço pendurado na janela, e a moça acenando-lhe, não teve dúvidas: acima de tudo, conquistara o coração de uma mulher, e estava feliz por ter feito, realmente, tudo o que queria naquela noite.
Saiu, com um sorriso nos lábios. Não se sabe se voltou, não se sabe o que deixou, não se sabe nem porque apareceu, ou se dele se falou. Só se diz que aquela donzela sempre o esperou – e, se você encontrar um lenço na sacada de uma janela, é porque ela ainda está lá, sempre esbelta, sempre bela, a esperar pelo homem que um dia ela quis que fosse seu.