Era Ano Novo e um anjo entrou, sem que ninguém percebesse, sala adentro.
Vinha meio cansado, as asas assim recolhidas, o andar cambaleante, meio trôpego. Mas percebi que era um anjo. Talvez pelo jeito de olhar, entre moleque e homem feito, talvez porque trouxesse uma mão no bolso e a outra coçando o alto da cabeça, onde, certamente, estivera a auréola que acabara por perder nas andanças por aí.
Ninguém se deu conta de que ele entrara na sala, apesar de ter tropeçado escandalosamente no tapete e soltado uma exclamação quase humana : “Pombas!…”
Será que só eu via o anjo?
Rodeou a mesa posta para a ceia e pegou, com a ponta dos dedos sujos, um pouco da farofa doce que cercava o peru soberano. Aprovou com a cabeça, fazendo um hum-hum engraçado, como se nele habitasse muito mais o menino do que o homem.
Fiquei olhando: anjo é anjo e é sempre bem-vindo à nossa casa.
Foi quando ele bateu palmas. Mas ninguém olhou, ninguém ouvira nada.
Pensei que talvez tivesse, eu, bebido demais. Que não era anjo nem nada, que era apenas um convidado a mais dos meus filhos. Mas não… Olhei o relógio: quinze minutos para a meia-noite…
O anjo rodopiou, dançando, passou por entre as pessoas felizes, ficou olhando os ponteiros do carrilhão e, depois, sorriu para mim. Acenei com a mão esquerda, a minha preferida, porque a direita nem tem a graça da borboleta quando aceno.
Estou grogue, imaginei.
Mas o anjo tinha sorrido pra mim e eu raramente me engano quando anjos sorriem pra mim com seus dentes brancos, mesmo que eles me apareçam num domingo, e em meio a uma movimentada avenida do centro, me tasquem um beijo, assim, com gosto de hortelã.
Tinha os dentes brancos, alinhados, o que contrastava com a barriguinha meio saliente: anjo guloso, pensei, sorrindo para o nada.
Era Ano Novo, e um anjo estava entre nós.
Sem que ninguém o visse, existia.
Sem que ninguém o percebesse, trouxera para mim suas asas fechadas, seu riso aberto, suas mãos de dedos curtos, seus pés pequenos, sua roupa de operário.
Que diabos seria aquilo, pensei sem pressa…
Por que um anjo cisma de me aparecer de repente, assim no meio da festa, beliscando coisas na mesa, rodopiando no meio das pessoas, sorrindo, sorrindo só pra mim?
Pisquei os olhos: uma, duas, três vezes.
Nada.
Eu jamais bebo e nunca poderia estar sonhando, ali com os meus, esperando chegar o Ano Novo. Pensei em sete caroços de romã, lentilhas e um champanhe gelado, as taças dispostas sobre uma mesa auxiliar, os pratos rebrilhando e os talheres tão bonitos.
Agora vem um anjo… e me atrapalha a expectativa de mais um ano?
Um alegria fininha, fininha estava acontecendo no meu lá dentro. O anjo sorrindo pra mim, com os cabelinhos espetados de menino, nem alto, nem baixo, ali sorrindo como se a me lembrar que todo amor é para sempre, que tudo na vida é sempre para sempre…
Olhei de novo o relógio: quase meia noite. Quando o carrilhão tocasse as badaladas da meia-noite, eu saltaria do sofá, correria em direção aos meus, gritaria um feliz Ano Novo…
O anjo colocou o braço ao redor dos meus ombros e começou a contar: um, dois, três… foi contando os segundos-vida, rindo assim com os dentes tão brancos e perfeitos e quando o relógio deu a primeira badalada sussurou ao meu ouvido:
– Feliz Ano Novo, Esther, feliz Ano Novo…
Saltei de repente, procurando a filmadora, procurando a máquina, procurando abraços, trêmula, confesso que um pouco cansada, no meio dos gritos. Abri a porta da frente e ainda pude ver quando ele, ao final de uma corridinha sobre o gramado, alçou seu vôo de anjo.
Com os olhos cheios de água, pude ver quando se voltou e acenou com sua mão pequena, mão do tamanho da minha. Mãos de só-anjo.
Mas nem era adeus, nem nada.
E no meio do tumulto, entre os risos e abraços da festa, começamos a ceia.
E sem que ninguém soubesse, ninguém visse, um anjo tinha entrado pela porta adentro. Tropeçara no tapete, olhara os quadros com curiosidade. Um anjo tinha, eu sei, visitado a nossa casa.