Cada coisa que acontece. Quando exatamente eu estava convencido de que todas as histórias que valiam a pena estavam só nos livros, e que as vidas de todas pessoas do mundo não tinham a dramaticidade de uma página de Gibbon, alguém vem com uma dessa.
Costumo chegar à igreja uns dez minutos antes da liturgia. É o tempo do leitor (auxiliar da missa) saber que eu estou lá e combinar as procissões do dia, etc. (Nossa igreja tem três procissões internas, toda liturgia, das quais eu faço parte). Na minha frente estava um casal de certa idade, com uma menina. Notei que a senhora apontava as coisas da igreja para a menina.
E eu peguei a deixa e falei com eles, explicando as particularidades da igreja – que a nossa igreja é católica mas não é latina, é Melquita, por isso é um tanto diferente – expliquei o significado de coisas como a iconostase, a posição e significado e de cada ícone, particularidades da liturgia, etc. coisa que geralmente as pessoas gostam de ouvir.
O senhor me ouvia, mas ficava o tempo todo olhando o grande ícone de Nossa Senhora do Líbano, na cúpula – e ele explicou – aquele ícone lembrava a filha dele. Uma filha que morreu, já moça. Claro que fiquei penalizado. E a senhora disse: essa menina – uma menina de oito anos que estava com eles – foi uma bênção para nós. E eles contaram a história: depois da morte da filha, eles pegaram essa menina com um dia de idade, e a registraram como deles, com a cumplicidade do médico. “Para não dar problema” – disse a senhora, os olhos brilhando. Coitada – pensei, mal sabe ela que aí é que pode haver problemas. Como eles já têm mais de cinqüenta anos de casados, e a menina tem oito, temos uma mulher dando à luz com mais de sessenta… ao menos no papel. Uma filha perdida, e outra no lugar.
Pensei, um drama shakespeareano se avizinha, e espero que não aconteça. Que peso nas costas dessa menina. Ela é bem diferente dos pais – eles são tipo árabe (tipo comum em nossa igreja) e ela é uma bela menina, quase a descrição da Iracema do José de Alencar – apenas não tem os olhos negros, e sim castanho claro. Espero que não haja um lance dela substituir a outra – isso pode gerar problemas, ela pode começar a querer ser ela mesma, talvez se revolte contra um lance de substituição. Ela é uma criança, e as crianças ao contrário da crença popular são terrivelmente egoístas e desinteressadas do mundo. Espero que ela não faço atos que possam decepcionar o casal. Espero que goste de estudar. Espero que não apareça grávida aos quinze. Espero tanta coisa… Espero acima de tudo que ela saiba compreender aquele casal, e os compreenda rápido – compreender depois que eles morrerem não vai adiantar nada. Enfim, espero que dê tudo certo.
E se der errado, será uma tragédia, no sentido estrito e aristotélico da palavra: um acontecimento em que ninguém é completamente bom, ninguém completamente mau, e ninguém tem culpa. Não dá para dizer que alguém foi culpado, Édipo, Jocasta, Laio, Creonte? Todos são vítimas. O pobre Édipo fugiu o que pôde dos crimes que cometeria. No caso, quem poderia culpar quem? Um casal amoroso por perder uma filha e querer que alguém fique no lugar dela? A menina, que quer ser ela mesma, que não quer ocupar o lugar da outra? A que morreu? Os pais biológicos da menina que não a quiseram? Quem é culpado? Ninguém.
Não há culpados. E só espero que não haja tragédia. Que o idoso casal e sua jovem filha se entendam sempre e singrem a vida que lhes cabe em paz. Convidei o idoso senhor a fazer parte de nossa procissão, levando um dos círios (grandes velas). A procissão, é claro, é solene e séria, composta por cinco pessoas levando cruz, os círios, o turíbulo de incenso, e fechada pelo Padre que leva o evangelho. Quando passamos perto da menina, ela acenou muito animada para o pai, com as duas mãos, sorrindo mostrando as gengivas. Foi a procissão mais alegre que já tivemos. E foi a única que me fez lutar para não chorar.