Durante os primeiros trintas dias de prisão, não vi um só rosto. Puseram-me numa cela isolada que media dois metros de largura por seis de comprimento, com uma porta de ferro e uma janela que mal passava um prato de refeição. Havia uma cama de alvenaria e uma privada no chão com um cano no teto para efeito de descarga. Em todos os meus interrogatórios, eles batiam na porta e eu tinha que voltar a cabeça para a parede, então, me encapuzavam, me algemavam e me levavam para uma outra sala.
Não dava para saber com exatidão quando era noite ou dia. Claro que, nos dias de calor, a parede esquentava, não obstante existir uma lâmpada acesa no forro da cela, apenas para confundir. Procurava seguir o meu relógio biológico, se bem que o carcereiro estava sempre tentando me desnortear. Certa vez serviu-me o almoço, em que mexi apenas na verdura, e, em pouco mais de uma hora, me trouxe o jantar. Como fiquei sem comer, apareceram dores em meus maxilares e resolvi mastigar o miolo do pão, que me era oferecido também em horas incertas, com o propósito somente de fazer exercícios.
Com três dias sem tomar banho, sem escovar os dentes e sem lavar a cueca, meu corpo começou a exalar um mau cheiro insuportável. Tentei falar com o carcereiro sobre a necessidade de tomar um banho e ficar vestido, haja vista que não dormia que prestasse com tanta muriçoca. Ele disse que cumpria ordens e que qualquer pedaço de pano dava para alguém fazer uma corda e cometer suicídio. Ainda tentei argumentar que, da maneira como estava sendo conduzido o interrogatório, eu iria terminar sendo assassinado. Ele me mandou calar antes que as coisas começassem a piorar para o meu lado.
Eu tinha consciência que, mais cedo ou mais tarde, seria preso. É que o nosso grupo de estudantes universitário imprimia um jornalzinho em que propúnhamos o fim da luta armada e a criação de um partido político dos trabalhadores, em vez dos vários partidos que se diziam representantes da classe operária. Evidente que esse jornalzinho era clandestino, pois vivíamos em plena ditadura militar. Embora nossa tiragem fosse reduzida, era nossa intenção sacudir com o pensamento stalinista das lideranças do movimento socialista local. Paralelamente, ainda tínhamos uma atividade prática junto aos moradores e donas de casas dos bairros da periferia da cidade na criação de suas associações. Ora, sem dúvida, éramos pessoas visadas pela repressão e devido ao crescimento do nosso trabalho, a prisão seria uma questão de tempo.
A poucos dias da prisão, tinha lido ‘Memórias do Cárcere’, de Graciliano Ramos e ‘Papillon’, de Henri Charmère, e, mesmo assim, fiquei assustado ao ser retirado da cela algemado e encapuzado e debaixo de pontapés e socos por todo o meu corpo. Deu-se início às minhas sessões de interrogatórios com essa demonstração de tratamento de choque. Uma de suas primeiras e desconcertantes perguntas foi de onde nós recebíamos orientação ideológica e financeira: se de Pequim, Havana ou Moscou? Como minha resposta foi negativa, passei pela primeira bateria de torturas.
O clima entre os estudantes universitários sempre foi de alegria e cordialidade, com todo o respeito às divergências ideológicas. Todos nós, membros das mais diversas correntes esquerdistas, éramos conhecidos como trotskistas, maoístas, stalinistas, etc. No entanto, havia um pacto ético e de amizade que estava acima das questões políticas. Eu tinha amigo de bar que não comungava com minhas idéias políticas, nem por isso deixava de sair com ele. Durante o meu interrogatório, avisaram-me que seria lido nomes de meus colegas universitários e que eu deveria dizer, na proporção que fossem lidos os nomes, a respectiva organização a qual pertenciam. Ainda ouvi o primeiro nome, tratava-se de Waldeck, meu amigo de cachaça e ligado a outra organização, então, tive estranhamente um branco em minha memória, ouvi gritos e senti estar sendo espancado. Acordei no meio da cela e com o corpo cheio de ronchas roxas.
Quando não estava sendo interrogado ou torturado, ficava pensando porque me batiam tanto? Afinal, eu não havia matado, nem roubado e nem era terrorista. Era apenas um estudante que sonhava com uma sociedade justa, democrática e socialista. Mas, à época, nos anos setenta, era proibido professar o socialismo. E eu professava com alegria e até com certa ingenuidade. Ocorre-me uma lembrança: ao sair da prisão, continuei a militância junto às associações de bairros e aluguei uma casa no centro da cidade para facilitar as reuniões das lideranças no sentido de fundar a federação. Era sábado à tarde e fui avisado que tinha dois homens querendo falar comigo. Pedi que os deixassem entrar e, imediatamente, os reconheci como sendo meus ex-algozes. Não lhes demonstrei nenhum medo, ao contrário, mostrei-lhes segurança e uma certa arrogância. Eles disseram que desejariam alugar cômodos e que tinham lido nos anúncios populares que naquele endereço era um hotel. Percebi que a história estava ‘furada’ e, de forma zombeteira, disse-lhes que os conhecia de um outro lugar. Eles vacilaram, sem me encarar, pediram desculpas e saíram visivelmente nervosos. Engraçado, nós, presos, algemados e encapuzados, eles nos torturam. Soltos e livres, eles morrem de medo da gente.
Volta e meia, na solidão da cela, me passava uma questão em minha cabeça. Por exemplo: seria o nosso jornalzinho capaz de desencadear a tão propalada revolução socialista? Impossível. Aquele punhado de estudantes idealistas que gostavam de praia, cachaça, futebol e um rabo de saia, queriam viver simplesmente o exercício da cidadania. Era difícil entender por esse ângulo.
Depois de vários dias presos, eu estava debilitado, me alimentava pouco, tinha sofrido torturas físicas e psicológicas e não tinha a menor certeza se sairia dali vivo. Fui arrancado da cela, mais uma vez, para ser interrogado. Fazia um vento frio e, ao longe, se ouvia o canto do galo, devia ser madrugada. Não dormi naquela noite. É que em meu depoimento ficou pendente uma pergunta que eu não soube dar a resposta. Eles queriam saber onde eu estive em dias tais e tais. Não conseguia me lembrar. Chegaram a insinuar que eu teria ido a Cuba fazer um treinamento de guerrilha. Em seguida, me mandaram para a cela e me lembraram que, a qualquer momento, ou eu diria tudo sobre o treinamento de guerrilha ou iria para o pau-de-arara. Passei a noite de sobressaltos.
No retorno para dar continuidade ao interrogatório, sempre algemado e encapuzado, uma leve brisa fria me trouxe um alento e senti que meu caminhar era firme. Eles recomeçaram pela pergunta que tinha ficado sem resposta:
– E, então, intelectualzinho de merda, inocente útil dos vermelhos, onde você esteve nos dias tais e tais?
Respondi:
– Esses dias caem nos finais dos meses. Era exatamente quando eu ia ao meu interior, em que meu pai morava, buscar arroz e feijão para o nosso sustento.
Reinou um grande silêncio na sala e percebi que a nossa cesta básica doeu mais que todas as minhas torturas.
Quixadá, 41 de março de 2001.