Encantamento

O mar, Marco, Marília, a ilha.
– Aqui sempre é bonito.
– Verdade.
– Estou vendo algo nas ondas, parece um golfinho.
– Pare com isso Marco, nem quero saber dessas coisas.
– Bobagem. Acho que foi impressão minha.
Silêncio.

O rosto claro de Sibila, seus olhos de cor indefinida, seu corpo volumoso, seu sorriso ingênuo.
– Como podem tuas roupas estarem secas se a sacola de lona está pingando água?
– Não sei, Marília, já disse que não sei.
– Puxa, não me conformo com esse nosso desencontro, você apanhou uma chuva e tanto.
– Chuva não, tempestade. Eu poderia ter morrido, com aqueles raios todos à beira do mar. O Tóbi me salvou. Meu Deus, como ele é lindo!
– Bem, o fato de você ter encontrado esse tal Tóbi, me faz sentir menos culpada. Eu pensei que você só vinha para a Ilha amanhã.
– Acho que não me expliquei bem. Eu sei que ligações interurbanas para celular são caras e me apressei. Mas, já te disse, todo o medo que passei, o cansaço, tudo valeu a pena quando vi aquele homem maravilhoso se aproximando de mim. Marília, ele é um Apolo. Um corpo maravilhoso, uns olhos impressionantes.
– Você já está fantasiando. É noite, como pode ter visto os olhos dele?
– Você percebeu o quanto estava relampejando? Clareava tudo. Ele me olhava de um jeito! Nem entendo como. Eu gordinha, de bermuda comprida, apavorada com aquela chuva e ele me dando a maior atenção. Você precisava ver como ele se preocupou quando me encontrou na beira do mar. Foi logo me retirando para a trilha, dizendo do risco que eu corria com os raios. Pegou minha mochila e me levou pela mão para a trilha.
– Sibila, e o que um homem estava fazendo à beira-mar com um tempo desses?
E você foi para um matagal com um desconhecido?
– Ah! com o medo que eu estava, eu ia perguntar quem ele era? Aceitei a ajuda na hora. Depois ele me disse que ama o mar, que está sempre por aqui. Com aquele corpo deve ser surfista. O apelido é de surfista. Aqui na Ilha do Mel tem muitos surfistas não tem?
– Sei lá. Tóbi me parece mais nome de animalzinho de estimação.
– Um animal e tanto.
– E por que ele não chegou com você aqui na pousada? Você nem tinha certeza de que eu estava aqui?
– Ele disse que precisava ir. Eu nem insisti, vi que era uma casa, se você e o Marco não estivessem aqui eu pediria ajuda. Só perguntei se eu poderia vê-lo de novo.
– E ele?
– Foi tão simpático. Beijou minha testa e disse:” Não se preocupe, minha menina, eu sei onde encontra-la, sempre”.
– Pretensioso ele hein ?
– Nada, ele deve conhecer muito bem a ilha e aqui não deve haver muitas gordinhas perdidas.

As roupas de Sibila completamente secas dentro da mochila molhada. Como é que pode?

– Você disse alguma coisa?
– Nada, estava só lembrando da Sibila.
– Por isso eu não queria vir para esse lugar. Quatro anos depois e você ainda tem esperanças que ela apareça.
– E se aquela história toda for verdade? Ela ainda pode estar viva.
– Marília, se outra pessoa me falasse isso eu compreenderia. Mas você? Por favor! Além do mais, aquela história é uma lenda amazônica, não tem nada a ver com este lugar.
– O tal surfista nunca apareceu.
– E daí? Poderia ser invenção da Sibila. Ela tinha tanta fixação em arranjar um namorado que inventou um.
– Você já me disse isso. Mas ela me contou tantos detalhes, outros encontros. E não me sai da cabeça a mochila dela pingando e as roupas completamente secas. Parecia mágica.
– Se você vai repisar esse assunto, eu prefiro voltar para casa.
– Talvez amanhã.

Dona Joaquina. Quieta. Misteriosa.
– Essa moça precisa ir embora.
– Nossa Dona Joaquina a senhora ficou mesmo impressionada com a história que eu e a Sibila lhe contamos.
– Ela precisa ir embora.
– A senhora conhece o Tóbi? Sabe quem ele é?
– Eu não sei de nada.
– Ele disse que está sempre por aqui. É um moço alto, a pele cor de jambo, mas, os cabelos são loiros, quase dourados e bem curtos. O corpo é forte e ele têm uma voz mansa, um tanto rouca. Os olhos são lindos. Azuis. Muito azuis. Parecem um pouco da água do mar.
– Você precisa ir embora, moça.

A tempestade. A noite clara pelos relâmpagos, o olhar de Marco perdido no oceano, a alternância de sombra e luz.
– Dona Joaquina o Marco viu um golfinho hoje aqui na frente.
– Não é golfinho. Preto ou branco?
– Se for branco é ele?
– Eu não sei de nada.
– Você viu o golfinho de novo Marco?
– Não.
– Era branco?
– Não percebi.
– Não percebeu?

As malas ainda fechadas. A dúvida.
– Vamos embora amanhã, Marco?
– Chegamos há poucas horas. Todo ano é a mesma coisa. Precisamos esquecer aquela história. Este ano vamos ficar ou não voltaremos mais aqui. Sua amiga já foi. Até a família dela já se conformou.
– Ela não era só minha amiga. Você gostava muito dela.
– Lá vem você com essa outra história. Vou dormir.

O teto. A luz entrando pela fresta. O barulho do mar. Os olhos de Marco fixos nos olhos bonitos de Sibila numa tarde de sol. Marília com os olhos arregalados na noite quente.
– Dona Joaquina, este ano o Marco quer ficar a semana toda. Disse que se não ficarmos, não viremos mais aqui.
– Ele viu o branco?
– Disse que não percebeu.
– Como?
– Também não entendi, como pode ver um golfinho e não perceber de que cor era?
– Vocês vão ficar?

O rosto deslumbrante de Sibila. Os olhos brilhantes exalando paixão.
– Encontrei ele hoje. Estava com uma prancha. Eu disse que ele era surfista. Passeamos muito.
– Já estava preocupada. Você saiu para dar uma voltinha e volta quatro horas depois.
Para um surfista, ele deve ser muito bom de papo.
– Quase não conversamos. Só andamos de mãos dadas. Depois sentamos numa árvore derrubada. Uma grande, bem branca que tem lá perto daquela palafita e ficamos olhando o mar. Nos beijamos. Foi lindo.
– Não quis me apresentar?
– Ele disse que outro dia. Parece que ele também esqueceu do tempo. Eu fiquei completamente fora da realidade. Tão bom.
– Você não andou fumando ou cheirando alguma coisa? Ele lhe deu algo para beber?
– Marília! Eu tenho 27 anos. Só tomamos guaraná. Eu mesma comprei num barzinho e levei para a beira do mar onde ele me esperava. Por favor, você está pior que a minha mãe. Por isso estou solteira até hoje.
– Desculpe.

Cheiro de peixe. Cheiro bom de camarão. Camarão ao bafo.
– Ela precisa ir embora.
– Dona Joaquina, não entendo a senhora. Diz que não sabe quem é o rapaz, mas quer que a Sibila vá embora?
– Você não vê como ela está ?
– Está apaixonada.
– Enfeitiçada. Como as outras . Vó Antonia contava.
– Isso é lenda, dona Joaquina. Coisas do povo daqui.

– Sibila, eu… eu quero conhecer hoje esse surfista, Sibila.
– Não sei se vamos nos ver hoje.
– Vocês não marcaram nada?
– Não. Ele disse que não precisa. Sabe sempre onde estou. E eu sei que ele sabe mesmo.

– Dona Joaquina, que história é essa de feitiço? Não acredito nesse tipo de coisa, mas a Sibila está tão misteriosa.
– Ela precisa de outro homem. Salve-a. Seu marido pode ajudar.
– Como assim?
– Ele é um homem muito bonito.
– O surfista?
– Não é surfista. Sibila precisa de um outro homem bonito.
– A senhora é doida. Marco é meu marido.

– Vamos dar uma volta, Sibila?
– E a Marília?
– Disse que não quer vir. Vai dormir.
– Logo ela que sempre quer andar. Então vamos mais tarde.
– Ela disse para irmos agora, talvez ela não vá hoje.
– Tudo bem.

Os olhos de Marco no rosto, nas coxas, nos seios de Sibila. Os olhos ausentes de Sibila olhando a espuma, as ondas, o mar.

– Foi bom o passeio? Você parece feliz.
– E você é louca.
– Você se sente atraído por ela. Agora eu estou concordando. Tenha um caso com ela. Poderemos livra-la do feitiço.
– Que feitiço? Você é doida. Vamos conhecer esse rapaz. Melhor, vamos embora e acabar com essa bobagem. Deixe ela aqui. É maior, sabe o que faz.
– Doido é você. Não vou deixar minha amiga sozinha.

Os olhos de Marco nas ondas, na espuma, no horizonte. As mãos apoiadas na pedra rústica.
– Viu o golfinho outra vez?
– NÃÃÃO! Estou em férias. Não posso olhar o mar?

– Dona Joaquina, acha que devemos ir embora?
– Não sei de nada.
– Há quatro anos atrás a senhora estava certa. Não tem certeza agora?
– O que tem de ser, será. Vó Antonia dizia. O que começou tem que acabar.
– Como assim?

– Marco, vamos embora.
– Já disse que não vou.
– Você só fica aqui nesta pedra, os olhos fixos no mar. Você mesmo disse, ela não vai voltar. Deve ter se afogado e o mar levou o corpo. Faz quatro anos.
– E o boto?
– Boto? Você não disse que era loucura acreditar? A lenda do boto não é amazônica? E é só uma lenda.
– Hoje eu vi dois. Brancos. Um maior, o outro, pequeno e gordinho…talvez gordinha.
– Bobagem Marco. Vamos embora.
– Não.

Os olhos vermelhos de Marília. A pedra rústica sozinha, o mar vazio.
– A senhora não viu o Marco?
– Não.
– Eu disse que precisávamos ir embora. Sumiu faz três horas.
– Ele viu dois botos brancos.
– Como a senhora sabe?
– Outra vez, alguém verá três. Anos depois outro verá quatro…
– O que a senhora quer dizer?
– O que tem que ser será.
Marília tão só.
As ondas, a espuma, o mar.
Os botos, as ondas, a espuma.
Os botos, os botos, os botos,
as ondas, as ondas, as ondas.
Os olhos no mar, os olhos nos botos, os olhos nos olhos. Marília no mar.
As ondas, a espuma, o mar.
Os botos, as ondas, a espuma.
Os botos, os botos,
os botos, os botos,
as ondas, as ondas, as ondas, as ondas.