Quando ela voltou, ele ainda estava na sala. A visão insólita: uma camada de cimento no piso, com mais ou menos um palmo de altura, e ele com as pernas abertas e os dois pés cimentados. Os braços também abertos, elevados e presos por uma corrente às paredes. Quase o desenho das proporções do homem segundo Leonardo pinçou de Vitruvius Polio.
– Eu avisei que não sairia mais da tua vida.
Martha sentou-se, não conseguiu dizer nada e pôs a mão no rosto. Ele havia dito que não aceitava a separação, que arrumaria algum jeito de plantar-se dentro dela.
– A tua vida é a minha Martha, minha arquiteta amada – complementou com um sorriso. Ensaiou algumas palavras, a voz trêmula ondulava entre as cortinas, o rosto não escondia o medo tatuado pela cena.
– És completamente louco, completamente – disse ainda enquanto rumava à cozinha. Bebeu água com açucar e ficou ao lado dele, sentada no chão. Fechava os olhos e ele impresso lá dentro: as pernas abertas, os braços acorrentados, o rosto tranqüilo. Tentou fazê-lo desistir da idéia, provar o absurdo daquela atitude infantil. Ele sorria em silêncio. Cansada, adormeceu. Na manhã do outro dia, encarou-o com ar sério e sacudiu a cabeça. Fez o café, ofereceu-lhe suco e torradas. Ele aceitou e agradeceu.
– Obrigado, amor. Fazia muito tempo que não me tratavas assim.
Ao sair para o trabalho, com um beijo no rosto disse que daria um jeito de tirá-lo dali ainda pela manhã. Ele apenas sorriu. Quando Martha retornou à noite, desculpou-se por não haver conseguido alguém que viesse quebrar o cimento. Ele disse que não havia problema, não queria sair, estava lúcido e consciente dos seus atos. Ela preparou um lanche para os dois, tomou um banho, passou uma toalha molhada no corpo dele e foi dormir. A manhã seguinte foi muito semelhante e as outras também.
– Preciso te tirar daí. Vais morrer assim.
Ele foi emagrecendo, veio uma febre persistente, as pernas incharam, mas ele continuava sem perder o sorriso e a maciez da fala.
– Martha, minha querida Martha – dizia agradecendo as atenções dela.
Uma noite, eles conversaram mais do o habitual. Ela encostou a mão no peito dele. Beijou-o e foi dormir. Ele agradeceu, chorando. Passadas algumas semanas, ele já pesava talvez menos de quarenta quilos. Ela dava-lhe doses elevadas de vitaminas, e ele as sorvia resignado. Mas, como elas não retardavam a velocidade do emagrecimento, começou a costurar as articulações, antes que os ossos se desestruturassem. Como a linha de costura era frágil, ele sugeriu que usasse nylon de pesca. Ela acatou e fez com muito esmero um reforço articular, e preservou o esqueleto de algum possível colapso arquitetônico. Enquanto ela amarrava-o, ele jurou estar enxergando Vitruvius Polio. Ao final da tarefa, ele agradeceu. A febre o fazia trêmulo e os olhos estavam distantes. Ela o cobriu com um cobertor, a partir dos ombros.
A situação se manteve assim por mais dois dias. Junto com aquele cuidado, ela beijava-o e às vezes choravam juntos. Ele fazia o possível para retribuir os carinhos dentro dos seus limites corpóreo-geográficos.
Depois, Martha não conseguiu se desfazer do corpo, que lá se encontra em seu reinado de âncora e silêncio. Na janela do quarto, um morcego sorri para sempre.