Este é um conto de Natal. O nome já o diz. Uma ficção, por natureza igual a tantas, que fala de corações motivados pelos festejos e presentes trocados, pelo aconchego sob um manto de amor que, nessa época do ano, é costumeiramente retirado lá do alto dos armários para aquecer o sentido dos laços fraternais; um cobertor adequado à emoções, que se estende conforme a frigidez de cada alma e na distância proporcionalmente inversa que atinge o olhar possível a cada um.
Não vejam aqui uma pretensa similaridade com C. Dickens e sua personificação da Avareza, a vilã aquecida no dia-a-dia de seu egoísmo, a confrontar-se com o Espírito de Natal nas ruas pobres e geladas de uma Londres, capitalista selvagem, mais fria ainda.
Pouco importa em que lugar aconteça a Noite de Natal; no calor dos trópicos ou na frieza polar, adversidades abrandadas pelo vinho gelado ou pelas lareiras felizes, de quem os tem ou pôde comprar; e pouco importam também as pessoas e suas culpas ou redenções anuais em data certa, personagens e suas caricaturas, infantís ou decrépitas. Tudo não passa de cenário, de mera figuração, ou mesmo de recurso de estilo; metáfora de literária suavidade na primazia do Bem, o que é agradável e gentil, em luta contra o Mal, que é o sofrimento e tristeza, na comemoração de um momento apenas, de minúscula e efêmera lembrança.
Relevante é aquilo que verdadeiramente simboliza o tempo do Natal, na época de quem escreve.
Não é raro que a figuração se tranforme no próprio símbolo: é a árvore que se enfeita ressequida e quase morta de frio, o som fugaz dos sinos, o canto de uma ocasião apenas, a frágil bola de vidro colorido, a ceia perecível, a luz das velas que se acabam…
Mas o ressequido e quase morto de frio, o fugaz, a exceção, a fragilidade, o perecível, e o que encontra o fim e se acaba, são adjetivos do dia-a-dia que apenas se agregam aos símbolos conhecidos, tal qual se agrega o sonho de uma noite apenas ao tempo de uma vida toda. Um sonho de felicidade, de irmandade e fraternidade, no único instante de uma única noite, a noite de Natal a cada ano. No final dela, ou até mesmo antes, invariavelmente, o adjetivo volta a corporificar um real substantivo chamado vida.
E para muitos, a neve enfeitará eternamente o símbolo “árvore” enquanto outros flocos gélidos, de egoísmo e indiferença, encobrirão e entorpecerão os olhos e os corações, tornando muito branca uma paisagem que desde a origem nunca o foi, que alguns vêem e outros não.
Assim, iremos para um lugar qualquer, onde se espera o momento de um Natal qualquer… Uma casa, em que se prepara uma grande ceia, onde uma menina, criança pequena com quatro ou cinco anos, acaba de abrir a porta da cozinha e assustar-se com a desordem. E dali mesmo falou, parada, a evitar aquele piso sujo e escorregadio:
– Mamãe, você acha que fico melhor com o vestido branco ou o azul?
A mãe mastigava alguma coisa, e ainda muito atarefada com os preparativos da ceia. Lambeu os dedos engordurados e olhou de relance para a filha; sorriu e disse:
– Ponha o cor-de-rosa com bordados, minha flor!
A casa fora limpa e arrumada com redobrada atenção, especialmente as salas e os lavatórios. Mas, na cozinha, o caldo fervente das massas ainda levantava a tampa da panela, escorrendo e se espalhando sobre o fogão, deixando, ali, o caldo de uma estranha sopa de palitos de fósforo, restos de farofa e grãos de arroz. O perú e os frangos já estavam prontos para a ceia e logo tomariam seus lugares à mesa, junto da leitoa. Mal se enxergava a pia, praticamente encoberta pelos pratos, panelas, assadeiras, conchas, copos, bacias, frigideiras… E faltavam apenas duas horas para a chegada dos convidados àquele cardápio esplêndido.
Ainda bem que a Maria resolveu ficar para a ceia… – disse a mãe, consigo em silencioso agradecimento à empregada que se dispusera a ajudar na limpeza – … se bem que estou pagando um bom dinheiro extra.
Aquele seria o primeiro Natal a se passar na casa nova. Muito espaço, janelas grandes, sacadas, jardins bem cuidados, salas amplas; e até dispunham de uma lareira, já acesa pelo marido, mesmo não sendo época de frio… Contudo, aquelas pequenas chamas deixariam o ambiente muito bonito e alusivo à ocasião… A mesa, arrumada com uma fina guarnição de linho, bem honrava a porcelana, a prataria e os cristais das raras ocasiões à luz de velas.
A mãe saiu da cozinha e deixou o serviço restante aos cuidados da empregada. Foi banhar-se e vestir-se, voltando rapidamente para uma inspeção final antes de iniciar a liturgia da sua recepção. Maria, já a organizar as coisas, apenas viu abrir-se e fechar-se a porta. Um instante apenas, mas o suficiente para que, enquanto aberta, ali entrassem alguns acordes de suave melodia natalina; assim que fechada, se perdessem os arranjos poéticos, da música, na orquestração medonha do ruído da limpeza.
No sofá da sala, as crianças sorriam felizes com a perspectiva dos presentes e sentavam-se, comportadamente, com os modos exigidos pelo alinho das roupas e à espera das visitas que começavam a chegar.
E foram muitos os beijos, os cumprimentos e brindes. Tantos quantos os pacotes deixados perto da lareira, sob a árvore de natal, cujos enfeites de bolas vermelhas e anjos de plástico dourado brilhavam à luz daquelas labaredas preguiçosas.
Maria, a empregada, trabalhava naquela casa havia pouco tempo. Sem referências ou experiência anterior, fora aceita somente porque era jovem e forte; negra, deu a todos, de si, a simpatia do sorriso impecavelmente branco. Seus patrões souberam que morava em dois cômodos na periferia da cidade e era mãe solteira; de um único filho, menino com quatro ou cinco anos de idade, nome José, que permanecia com uma prima enquanto estivesse no trabalho; também souberam, mas não o motivo, que Maria relutava em ficar até mais tarde no serviço. Contudo, não se importavam, pois a empregada esforçava-se para dar conta de tudo, durante o seu horário normal, e o conseguia. Talvez, pensavam, fosse o caso de lhe darem até um pequeno aumento, pois justamente naquele dia, véspera de Natal e de tantos preparativos para a ceia, Maria aceitara ficar além do horário; mediante oferta de pagamento extra, é verdade, mas ela, que poderia muito bem recusar, mostrou consideração ao patrões e se dispusera a ficar.
Contudo, isolada na cozinha, agora um compartimento estanque, Maria estava muito preocupada. Procurava erodir aquela montanha de louça, trabalhando rapidamente, como se embalada pelos seus próprios sussuros no compasso de algum fragmento da música que teimava em se permear nas paredes. Enquanto isso, o seu olhar atravessava o vapor impregnado nos vidros da janela e se perdia numa escuridão longínqüa, no pensamento dirigido à família… Ah! José, meu filho… Prima Estér… você é tão boa para mim… mas o seu marido é um bêbado! Violento! Tenho tanto medo que ele nos faça algum mal… e que eu não esteja por perto…
Estér também tinha um filho, de nome João, da mesma idade que José. Normalmente, Maria retornava do trabalho antes que o marido de sua prima chegasse em casa, bêbado como sempre, mas hoje teria de correr o risco. Com o ganho extra, pretendia levar à mesa de Estér alguma coisa além da sua gratidão e dar um presente de Natal ao filho e ao sobrinho. O primeiro presente que receberiam… Delas, o presente seria o profundo sono daquele homem, na total inconsciência, e os sorrisos das crianças. Nada poderiam esperar além disso.
Enquanto Maria se entregava ao trabalho e à escuridão no além da janela do seu sonho, o marido de Estér chegava em casa. Insuportavelmente bêbado e violento como nunca antes. Possesso. Transpirando álcool e ódio contra tudo e todos. E naquele dia, naquela noite, talvez até mesmo contra si, como se a ira sem limites lhe fosse o caminho da reação derradeira, o último degrau da escada que descia, o atingir da sentença final em sua vida; e o sofrimento, então, o presente, a dádiva, o ósculo da desgraça a premiar a única vitória que poderia ver na sua total derrota.
Ele espancou a mulher sem piedade, na frente dos pequenos, sentenciando-a pelo dividir da pouca comida por uma boca a mais. Bateu muito, machucando-a profundamente e até que ela desfalecesse.
Algum tempo depois, Estér conseguiu levantar-se, inspirando, expirando, devagar sentindo as dores do corpo. O marido havia saído. Os meninos, cada um encolhido num canto, choravam minguadamente e reagiam lerdamente aos seus chamados; também haviam apanhado… e muito. Estér deu o ouvido aos sons do lado de fora da casa. O silêncio era absoluto. Pensou e chamou por muitas Marias; e mais por uma delas que não chegava.
Estér lembrava-se do bairro e algo de como seria a casa dos patrões de Maria. Ignorando o real estado dos meninos nem sabendo se ela mesma iria suportar as dores, de corpo e alma que sentia, ainda cambaleante, pegou pelas mãos a José e a João. Sem perder mais tempo, correu na escuridão adentro.
Andaram muito, sujos, machucados, trapilhos. Estér já carregava José nos braços e sentia que rapidamente lhe acabavam as forças; a visão ora lhe sumindo, ora lhe voltando, ficando turva. José mal respirava e João, a todo momento, dobrava os joelhos e caía, como se insistisse a implorar-lhe algo, naquela posição. Estér fez um esforço, superior, açoitado por orações cadenciadas nos seus passos apressados e também carregou o próprio filho. Andou através de ruas e suas casas iluminadas, herméticas ao exterior. Eram portas fechadas ou se fechando à sua passagem, até que, agradecendo aos Céus, viu que além de uma grade, depois de um grande jardim, elevava-se uma sacada de janelões ricamente iluminados, e pessoas andando naqueles espaços de luz, sorridentes, felizes, gesticulando, como se expostas aos olhares, tão distantes, lá do meio da rua; como se aqueles requadros fossem uma vitrine de Natal.
Ali, Estér reconhecera o seu destino. Deixou os meninos deitados na calçada e atirou o seu chamado por alguém, para além das grades e do jardim.
Dentro da casa, o festim se espoucava no champagne e no barulho dos papéis de presente rasgados por mãozinhas já habilidosas nesse tipo de trabalho. Sobre a fineza do linho daquela mesa, tão maculado por manchas de toda a espécie, todos presenciavam a orgia das taças deitadas, das garrafas vazias, dos pratos sujos e tantos restos sob talheres cruzados. Os convidados, satisfeitos, já desprezavam o sabor das intermináveis iguarias. A música, muito tempo antes, havia perdido a suavidade das melodias natalinas e assumia a ruidosa verdade da festa, todos mal se ouvindo nas conversas.
Foi nesse instante que alguém, na janela da sala, enxergou lá no portão um vulto de mulher, suja e rota. Acenou com um “já vai” e se pôs a cochichar algumas palavras no ouvido da mãe, a dona da casa, interrompendo-a na conversa qualquer, numa roda das mulheres. E outro “já vai” retorquiu-se juntamente com um leve toque nos joelhos de uma amiga, retendo-lhe as atenções até o termino do assunto.
“Atenderam!” – suspirou Estér, que enfim se deixou cair, vagarosamente, ao lado dos meninos inconscientes.
Estér não soube dizer quanto tempo passou ali, deitada, vendo se formarem imagens da sua vida, e logo distorcidas e sugadas através de um orífício à frente dos olhos; ouvindo sons ininteligíveis, sem mesmo saber se aquilo já seria o retorno à consciência ou não. Quando acordou, ainda não enxergava com nitidez e pensava que tudo poderia mesmo ter sido apenas um sonho ruim.
E viu, mas não sabia quem poderiam ser, dois homens atrás de uma mesa enorme, onde havia alguns pães e taças sobre a toalha branca. Também não sabia quem seriam aqueles outros que no colo carregavam João e José, tão limpinhos, sorrindo e vestidinhos com uma túnica tão brilhante, cujo tecido até parecia fios de luz! Todos aparentavam tanta felicidade! Cantavam melodias que Estér jamais ouvira, principalmente os meninos, e como se nada houvesse acontecido!
– “Venha, Estér – disse o mais velho – Hoje é Natal. Para Mim é uma grande data. É o aniversário do Meu Filho Amado. Compatilhe de Nossa mesa.”
Estér ouviu aquela voz. E se esqueceu da casa deixada às pressas; também se esqueceu da surra, da miséria, do sofrimento, do ódio, do egoísmo, das indiferenças… de tudo. Não sentia mais as dores, só leveza e felicidade inspiradas pelo tom das palavras ouvidas. As suas tristezas não existiam ali! Sentia todos tão próximos de si como se fossem… uma só pessoa!
Assim, Estér aproximou-se do seu Anfitrião e Ele tocou-lhe suavemente as mãos…
Estér compreendeu… e quis chorar porque se lembrou de Maria… e da fragilidade surgida com tanta violência em seu marido.
Lá na casa, a mãe acabara de entrar na cozinha. Viu a limpeza, o trabalho feito, mas não reparou nas mãos da empregada, que se apertavam nervosas, nem em seus olhares aflitos para o relógio. Foi logo dizendo:
– Maria, há alguns mendigos chamando no portão. Vá até lá e dê alguma coisa a eles. Depois você pode ir para casa. E muito obrigada!
(Natal, 1998)