Meus primeiros contatos com a religião se deram meio por acaso e até por um certo escuso interesse. Não chego a me incriminar por isso, afinal eu era só um moleque a quem tudo era então desculpável. Na verdade, confesso, era assíduo ao comparecimento às rezas na roça, às quais eu ia mais para ficar brincando em roda da capelinha tosca, do que para me entregar às orações. Essas que nem sabia dizer, e menos ainda desenlear seus obscuros significados. A reza era, para uns, o culto, para outros – como nós – puro lazer. A capela, um simples cômodo isolado. Se bem que amplo, era mal construído. Paredes brancas desaprumadas, erguidas nas horas de folga dos camaradas, chão de terra batida e uns poucos rústicos bancos enfileirados. Era só isso. A um tempo de todos e de ninguém, local de reunião e preces. Fechado na maior parte dos dias. Exceto se data de santo importante caísse em dia de semana, era aberto somente aos sábados ou domingos. Não era incomum encontrar-se ali vez por outra, sob os bancos, algum urutu entrado pela fímbria da porta, acoitado na penumbra calma da igrejola. Nos dias chuvosos, de vento, a água invadia o lastimável templo e formava uma lama fina, que impedia aos fiéis se ajoelharem, por mais que tivessem fé.
De habitual, no sábado, o povo da fazenda ajuntava-se para as rezações lamurientas, enquanto nós, os moleques, fazíamos algazarra no terreiro varrido com esmero, a vigorosas vassouradas de amarrados de guanxuma, pelas beatas, depois de espargir baldes de água a fim de evitar que a poeira se levantasse e maculasse as alvas camisas, exclusivas de ir à reza.
Ficava no ar um cheiro de terra molhada e da guanxuma cortada de fresco, um cheiro de verde, um denso cheiro de sábado. Vezes havia em que as beatas iradas brandiam as vassouras em nossa direção, que moleque é bicho atentado, diziam. Mas ficava nisso.
Emprestava pouca atenção, a bem dizer nenhuma, aos rituais que Zé Preto, fulvo, desdentado, rezador fervoroso e de inconteste sabença no ramo, impunha aos fiéis na sua língua engrolada. Sua voz roufenha, de tanto pito e fumo forte, se alastrava no fim da tarde, desafinando nos cantos, seguida obedientemente pelas velhas em guinchos contritos e lancinantes. O beiço roxo e proeminente de Zé Preto vibrando nas notas mais altas. Mais lúgubre, no entanto, era Joaquim Paletó, com sua voz de baixo, pesada e um pouco fanha, costumada a fazer a segunda nas modas de viola, que substituía a Zé Preto nas suas ausências fortuitas por obra de severas mazelas nos quartos, que lhe impunham impedimento até de andar certas vezes. Apesar disso, de um pouco de medo daqueles lamentos, éramos freqüentes à reza.
Isso me ficou na memória, além do cheiro de café coado na hora, distribuído à vontade em canecas de lata, com biscoito, ao final da simples demonstração de fé cega daquela gente rude, mas compenetrada das suas obrigações semanais para com Deus e os santos de maior prestígio naquelas paragens. No pé da serra, onde os ventos assopram constantes, fustigando os cavaleiros que, terminada a função religiosa, iam-se ao escurecer.
Depois, viemos para a cidade à caça de escola. Minha fé, que já era falsa e pouca, e o meu medo coisas que se confundiam para mim – acabaram por se perder de uma vez. Meu pai, homem sério, aferrado a princípios simples e diretos, cuidava de manter a sua crença, mas não se dispunha a nos doutrinar, nem a mim e nem a meu irmão mais novo. Haveria de ter tempo para isso, dizia, mas criança, nestes misteres, não conta. De obrigação batizavam-se os filhos e, depois, no tempo certo, confirmava-se o sacramento com o óleo santo da crisma. Compadreava-se e dava-se por cumprida a tarefa.
Mas, na escola havia aulas de religião, e eu ouvia as histórias de santos, tais como a do mártir Estevão, atual Santo Estevão, que consta ter sido um dos primeiros imolados da fé católica, apedrejado até a morte. Havia ainda histórias tenebrosas ocorridas num período brumoso, nas catacumbas de Roma, o lenço caindo da mão de César, cristãos sendo devorados nas arenas, antes o suplício, o calvário e a crucifixão de Cristo. A cabeça de João Batista numa salva de prata…. Eu imaginava a cabeça de João na bandeja, um olho aberto, um certo ar de riso aquele meio-riso estóico e superior que os mártires habitualmente ostentam a barba desgrenhada, empastada de sangue seco, as equimoses na face lívida… A religião me apavorava cada vez mais, só via nela mortes e sacrifícios.
E eu arribava das aulas todas as vezes que podia. Porém, sabia que, por mais que eu evitasse, assim como chegam todos os dias, o dia de confessar meus pecados acabaria por chegar. Assisti a incontáveis aulas, catecismo, decorei orações, rezei terços, dúzias de ave-marias, pai-nossos, salve-rainha, vida doçura, esperança nossa salve! Creio em Deus pai todo-poderoso, o criador do céu e da terra… Desgastei contas de terços, tanto que os rodei nos dedos. Eu não agüentava mais, depois de tanto estava pronto para o sacrifício. Os santos me derrotaram de cabo a rabo. Catecúmeno, eu me rendia, confessaria meus pecados, se era isso que queriam, afinal.
O padre veio. Batina longa e alva, cíngulo alto encimando o ventre volumoso, somente a ponta dos sapatos lustrosos à vista, e nos deu as instruções finais. As orações para antes e para o empós da comunhão, ensinou-as todas a nós. O corpo de Cristo, a aceitação da fé, um pé dentro do céu… No mínimo, uma garantia de vaga no purgatório. Era um progresso e tanto!
O dia da confissão se aproximava velozmente. Eu imaginava como o tempo difere de uma situação à outra, a semana do Natal demorava tanto a chegar! Os dias passavam lentos, preguiçosos. Mas, a da confissão vinha solta a galope na minha direção. Eu precisava pensar nos meus pecados, pesá-los, classificá-los em mortais e venais, arrepender-me deles, e aceitar agradecido a penitência que me fosse imposta. Arrependei-vos! Arrependei-vos! João comedor de gafanhotos, vestindo rústicas peles e gritando enfurecido antes de ser decapitado… João com a cuia d’água sobre a cabeça de um Cristo molhado, as vestes coladas deixando entrever a magreza do corpo, músculos e tendões retesados. O Cristo sendo batizado no Jordão, eu vi num quadro… Além de tudo eu tinha de me arrepender, já não bastava a humilhação de confessar?
A ninguém eu convenceria se declarasse meus pecados bobos, uma mentira ali, outra lá, um trocado que surripiei da mãe, a fuga das aulas de religião, os pensamentos impuros com Maria José, a menina vizinha magrela e feia, mas, de qualquer modo, fêmea. Meus pecados não faziam jus a tanto cuidado. Era preciso mais. As pernas da professora, o seu cheiro de alfazema, o rego alvo entre os seios, no generoso decote, quando se inclinava na carteira para ajudar os alunos este pecado inconfessável. Cristo que perdoasse, mas este eu não dizia, não!
O jeito era inventar um lote de pecados brabos, desses que ninguém pudesse botar defeito. Fosse o que fosse, era perdoável, mesmo os pecados mortais. Deus perdoa tudo, dizia o padre. E a confissão era secreta, tudo segredado através das finas treliças do confessionário. O padre lá dentro, talvez dormindo, daria a regular penitência de dez ave-marias, cinco pai-nossos, pouco menos, pouco mais. E estava tudo resolvido, limpo, leve e salvo. Era isso.
Contudo, o mundo é pura surpresa, cada vez mais me convenço disso. Não haveria confessionário pra tanto pecador, era uma leva grande de tenros penitentes. Portanto, a confissão seria cara a cara, a frio. Eu só soube na hora que cheguei lá, disposto a desfiar um rosário de atos pecaminosos que exigiriam bastante da bondade divina e mereceriam, sem dúvida, uma exemplar dose de reforçadas penitências.
Gelei. A bola do joelho tremeu. Uma coisa era falar sem saber quem estava do outro lado, ou, mesmo sabendo, mas não vendo. Outra, era ficar de joelhos olhando na cara de um homem, ainda que um padre, enunciando todos os meus podres, revirando as entranhas em busca de um perdão que nunca pedi. Aliás, indevido, que nada que fiz julgo errado. Quis escapulir, mas nem tempo pra isso sobrou. Um padre novo me chamou e, colocando a pesada mão sobre meu ombro, me fez ajoelhar. Já dizendo, acusador: “Meu filho, confesse os seus pecados, Deus o ouvirá”. Estava ali o meu confessor. Eu, pego assim, no contrapé, já ia me entregando, gaguejante, dizendo coisas que nunca diria a ninguém. Mas me recompus a tempo e, olhando firmemente para o padre, desatei minha trouxa de pecados, desandei a falar afobado, uma dúzia que tinha decorado. Pecados contra os pais, inveja, gula, luxúria, ira, preguiça, a lista completa, os capitais, municipais e federais. Tinha pecado para tudo que é gosto. O padre, lá pelas tantas, acho que se aborreceu e me perdoou de todos. Assim, de uma pancada só, me limpou a alma de uma vez por todas. Saí de lá aliviado, pensando que tinha feito o que era devido naquelas circunstâncias.
No dia seguinte haveria a comunhão. Estávamos devidamente advertidos de que não deveríamos pecar até que comungássemos, senão a confissão seria inválida e a comunhão seria inútil. Mas como não pecar, se tudo é pecado? Quanto mais eu evitava pensamentos, mais eles me vinham à cabeça. Impossível não pecar em pensamentos.
Chegada a hora da comunhão, finalmente. Roupa nova, imaculadamente branca, sapato de amarrar apertando como que a me punir de tudo, a fila indiana da comunhão… Eu esperava que o sangue escorresse da minha boca transgressora, o corpo de Cristo sangrando pelas chagas abertas. Tantos pecados numa noite insone. Maria José, a vizinha, a professora e suas pernas grossas, a revista indecente escondida no armário, sob uma pilha de gibis também pecaminosos, o maço de cigarros oculto na fenda do muro do quintal…
Comunguei. O padre ricamente paramentado depositou com indiferença o círculo branco, o ázimo pão sobre a minha língua. Então, na exigüidade daquele contato, pude notar que suas unhas não eram tão limpas. Senti o insosso sabor da hóstia na minha boca. E, com grande alívio, após alguma espera, percebi que não houve a esperada hemorragia. Esgueirei-me por entre os bancos e fiz pose contrita no genuflexório, meu melhor esforço em aferrar na cara uma expressão de inocência. Um fundo azul de papel e um Cristo inerte estendendo-me a hóstia, tendo na outra mão um cálice dourado. E fui devidamente fotografado empunhando uma longa vela, pra testemunho aos meus pósteros.
E fomos todos alegres para a festa onde havia bolo, refrigerante, chocolate quente e variados sanduíches. Os pecadores supostamente redimidos tinham direito a isso, além da temporária salvação eterna, ainda que não merecessem o perdão e menos ainda a festa.
Dali em diante, porém, seria tratado com a deferência restrita aos iniciados nas coisas divinas…