Olhando dali, da beira da calçada do jardinzinho malcuidado da praça, sob o claro do sol, ele me parecia muito velho. Velho demais, acho que secular. E já meio caduco…
Sentado no banco da pracinha. Sozinho, fumando seu cigarro de palha.
Com seus fantasmas, que só ele via.
Ousasse alguém sentar-se ao seu lado, de imediato era expulso com um grunhido feroz. Aquele lugar era do Felipe, o velho médico já retirado da profissão, e que também não batia bem da cabeça. Esclerose, suponho, ou simples velhice…
Os dois ficavam ali, lendo o jornal e discutindo política, consertando o mundo a seu modo, fazendo e desfazendo segundo seus próprios desejos. Aquele deputado é um ladrão! Homem direito era o Dr. Getúlio, mas se matou. Não agüentou viver no meio dos pulhas. Bradava um deles, o outro contestava, e aferravam-se os dois numa discussão sem fim; até que um deles, muito irritado, se retirava sem nem dar adeus. No outro dia, era a mesma coisa. O povo da cidadeca já se acostumara, e lhes dera a posse definitiva daquele banco. Era deles, e ninguém os incomodava…
Num ímpeto, cheguei-me a ele. O velho Felipe ainda não aparecera, mas o lugar estava ocupado pelo jornal, como uma reserva permanente.
Ele ainda não se dera conta da minha presença. Examinei-o mais de perto: a cabeça inteiramente branca, o rosto largo, bigode amarelado de fumo e idade. A expressão fechada, sombria, chapéu pousado no banco, bengala recostada. Quando ria, e raro era um riso, com seu jeito de tigre velho, um dente de ouro rebrilhava…
Um cinto largo, anel no dedo, terno branco de linho, a camisa meio encardida, abotoada até o gorgomilo, e botinas marrons impecáveis.
Não usava gravata, máximo um lenço no pescoço para se proteger da friagem e esconder o quadriculado das rugas centenárias.
Era um homem grande, e largo. Corpulento. Pose de coronel, embora nunca passado de capataz. Depois foi fazendeiro pequeno, de gado de corte.
Lembrei-me de idos tempos em que ele imperava na fazenda.
Era o diabo, mandava e desmandava, sua voz era lei. E era valente, topetudo, acintoso e boca suja. Era o próprio coisa-ruim. Odiado por muitos, mas sempre pelas costas; cadê a coragem de enfrentá-lo?
Admirado abertamente, no entanto. Especialmente pelos moleques que ficavam de boca aberta só de ouvir as histórias que dele contavam. Conquanto moleque com ele não tivesse moleza. Fosse quem fosse, era obrigado a levantar cedo e ir pro pasto buscar vacas, ajuntar o gado para o leite. Isso antes de amanhecer. Caso contrário o rebenque cantava. Os pais da gurizada odiavam-no em silêncio, pois não tinham coragem bastante para se opor a ele. Havia moleque que prometia, solene, quando crescesse, matava o carrasco. Mas no fundo, bem lá dentro, queria era ser como ele; com seu cavalo grande e arisco, seu chapéu desabado, trinta-e-oito longo na cinta, e botas altas ornadas de esporas brilhantes…
As meninas, essas então, era visível a admiração nos olhos delas. Tanto que nenhuma se casava sem levá-lo para padrinho. Aí se incluíam as sobrinhas, primas, nenhuma exceção. Quando convidado, ele assentia com gravidade: Com que, então, a moça ia se casar? Pois, muito bem!
E dizia que era com muito gosto que seria padrinho. Mas antes, mal pergunto, gostava muito de saber quem era o sujeito com quem ia a moça se casar. Se conhecia, se era trabalhador, cumpridor… Sendo algum que não merecesse sua inteira aprovação, ele dizia: Esse rapaz precisa de uns tantos aconselhamentos. Vou falar com ele. E ia dar uma prensa no noivo espantado. Cuide bem daquela moça, caso contrário vai se ver comigo! Só depois disso dava o seu acordo ao casório…
Quando chegava o dia, ele vestia seu terno branco, mandava engraxar as botas, chapéu panamá quebrado de banda. Alugava um carro de praça, e ia buscar sua irmã caçula que seria a madrinha. Não levava a mulher, salvo vez ou outra. Achava que a irmã mais nova compunha com ele um par bem mais elegante.
Entrava na igreja sobranceiro, governando a noivinha assustada. E caminhava solene, o tacão da bota ressoando no chão de tábua corrida, até entregar a noiva ao felizardo. Não sem antes relembrar, com sua voz poderosa, o noivo nervoso de que a moça era protegida dele para qualquer assunto. Ele que cuidasse muito bem dela! Tentava falar de maneira discreta, mas todos ouviam, e sorriam disfarçados. O noivo gaguejava, amarelo. O padre aguardava com paciência. E só então a cerimônia prosseguia…
Não ia jamais à festança. À porta da igreja despedia-se dos noivos; antes enfiava a mão no bolso e de lá tirava um maço gordo de notas, que entregava à noivinha sem olhar o valor. À vista de todos, exibia-se… Era o seu presente, para começar a vida nova nada melhor que dinheiro…, dizia. Os dois, agradecidos, beijavam efusivamente as mãos do generoso padrinho. E viam-no dirigir-se ao carro alugado, e partir…
Da janela do banco traseiro do forde, ele acenava com o chapéu branco a jeito de imitar o gesto característico do Getúlio, seu ídolo, quando se dirigia ao povo.
Não passava um mês e lá estava ele de novo; outro casamento, mais afilhados…
Agora eu olhava para ele ali na praça vazia. Meu filho ainda pequeno, ao meu lado, olhava impressionado para aquele velho impávido, de ar taciturno.
-Quer o quê? – ele me notara, um tanto aborrecido pela minha intrusa presença na sua praça.
-Sou eu, tio – mas ele não me reconhecia.
-Eu quem? Vou lá saber quem é o senhor, moço? – velho é sem paciência com homem, velho é paciencioso com moça e criança.
-Eu, o filho do Vicente. – ele hesitou um pouco, revirou sua memória falha e brumosa. E, súbito, deu ar de entendimento.
-Ah, aquele seu pai, valia nada – eles nunca se deram bem.
-Ele dizia a mesma coisa do senhor – retruquei com calma desafiadora
-E ele, como anda? – a pergunta automática, ignorando a provocação, não queria saber nada. Senti certa pena, fosse antes ele explodia em imprópérios.
-Morreu, tá fazendo dois anos – informei, e fiquei observando sua reação.
-A velharada está acabando – assoprou com força a fumaça cinzenta do cigarro de palha, e mirou para longe, fixando o olhar mortiço num ponto indistinto…
-É, ninguém fica pra semente – a frase feita me veio sem que eu quisesse, inconveniente…
-E esse aí, quem é? – tangia o assunto a seu modo, olhando de relance para o meu filho.
-Meu filho. Queria conhecer o senhor – esclareci.
-Pois conheceu, pronto! Mas ele está muito magro. Vê se cuida bem dele. Agora me dê licença, que estou esperando o Felipe – E virou-se para o lado, concentrando-se no jornal. Dali para frente, para ele, eu inexistia…
No mês seguinte, novembro chuvoso, fui ao seu enterro.