O ano entrara pela minguante. Logo o verão seria abrasador, como diziam todos; as estrelas do carreiro de São Tiago também já confirmavam para breve um verão fortíssimo.
Foi neste período que o Capitão Virgulino Ferreira da Silva sumiu da caatinga, deixando as volantes policiais que o perseguiam desorientadas. Deram-no até por morto. Nem os coiteiros próximos do município de Moxotó até Águas Belas ou Princesa sabiam de seu paradeiro, tampouco os casais de acauãs ou tetéus, aves de lei.
Isso foi no início de 1930, quando seu bando precisava de armas e munições, e sua liderança periclitava.
Maria Bonita estava bonita demais, estava grávida de quatro meses e meio, e a criança já começava a mexer em sua moela, como dizia. Embora os esconderijos garantissem a sobrevivência do bando, ele, como chefe, tinha que fazer algo maior e muito rapidamente.
Em São Paulo, após a semana de 22, alguns intelectuais paulistanos tinham admiração pela figura do cangaceiro, queriam-no como um sentimento novo de brasilidade revolucionária. Compararam-no com Garibaldi ou Carlos Prestes, talvez por desinformação ou porque para eles, heróis eram todos aqueles que um dia lidaram com a pobreza e a perene miséria dos homens.
Por intermédio do folclorista pernambucano Getúlio Cezar, discípulo de Gilberto Freire, a Lampião foi oferecido um convite e um adjutório.
Naquela hora, ele havia amontoado toda a munição do bando que não chegava a uma centena de cartuchos; o próximo confronto só poderia ser desfavorável para os bandidos. Naquela época, as volantes os caçavam com a “costureira”, apelido da metralhadora.
Os olhos de Lampião não mais lhe permitiam que gabasse sua pontaria, que já não era certeira, em virtude do petirijo que avultava na vista direita.
Naquela quente manhã, às dez horas, o sol dominava tudo. Ao longe, a Serra do Araripe cachimbava. Lampião, após ter olhado o vapor na distância, contou o dinheiro que possuía todo o bando, tudo que saquearam e decidiu que partiria. Aceitou o convite e saiu acompanhado de Livino, que estudara no seminário de Crato. Partiram dois dias depois, com chapéus de palha à moda da cidade. Ele, em uma égua padreada recentemente por um jumento, e o outro, em uma mula chamada Bolinha. Nas estradas, nas feiras, nas roças, nas conversas simples, o assunto preponderante era um: a chuva; que não vinha.
Com este assunto, viajaram dezoito dias até Recife, a um endereço em Apipucos. De lá, embarcaram em um domingo num velho Ita.
Foram para o sul a fim de honrar um convite e adquirir munição, e armas tão preciosas. Estiveram em São Paulo.
Quase ninguém suspeitava daqueles homens trajando tecido grosseiro. Lampião mais enjoou do que viajou. Passou dez dias vomitando e tendo engulhos na terceira classe, no porão de um vapor da Lloid Brasileiro e pensando dolorosamente no que sua mulher sofrera no início da gestação. Aquilo o irmanava mais ainda a ela.
De noite as pessoas cantavam:
“o’mana, eu quero ir
o’mana, eu quero, eu vou,
o’mana, eu quero ir
pra este fogo abrasador.”
Tanto em Salvador como no Rio, não saiu do vapor, porque sua fama o precedera. Viajava estirado em uma rede vagabunda, com todos os fios rotos.
O hábito o fazia deitar-se vestido e calçado. A única coisa que o fazia adormecer era o choro compassado de uma ou outra criança de colo. Talvez tão clandestina na vida quanto ele, que levava na bruaca seiscentos e tanto contos de réis, enroladinhos, quase todo o dinheiro do bando. Levava um ferro branco de sangrar, um escapulário com poder de neutralizar as forças dos inimigos e um endereço na capital paulista, endereço este de um armeiro armênio, negociante de armas, fornecedor dos engenhos e dos políticos nordestinos.
Livino era supersticioso, ambicioso e fiel a seu chefe.
Além das armas, que eram de extrema necessidade para seu bando, Virgulino tinha se dado outras incumbências: comprar alguns presentes para sua mulher, cheia de querer, e pagar uma promessa feita a Nossa Senhora Aparecida. Tinha que ir aos pés da Santa rezar, mas só depois de comprar os fuzis, as carabinas e os rifles.
Lampião viajava com o nome de Lino da Silva, nome de seu avô sapateiro.
Livino sabia ler. Era o único do bando, por isso era estimado, copiava as orações para os homens, andava sempre com o Almanaque Lunário Perpétuo ao alcance das mãos. Viajavam também muitos outros na terceira classe, e um repentista cantava assim:
“Lá vem Livino
lá vem Lampião
chapéu de couro
fuzil na mão …. ”
Escutando aquilo, ficava orgulhoso, seguro e adormecia cada noite para acordar no dia seguinte mais perto da morte.
“… As moças de Pernambuco
são moças de opinião
botam queijo e rapadura
no bornal de Lampião.”
Livino dormia pensando em aventuras ao lado de Virgulino Ferreira.
Arribaram em Santos. Naquele mesmo dia foram para a Capital. Ao chofer de táxi curioso que os levava, disseram que eram fazendeiros plantadores de algodão em Seridó e vinham negociar seu produto.
Desceram no Vale do Anhangabaú, assustaram-se com o barulho dos bondes nos trilhos e a profusão de pessoas e gentes, sentiram falta do sol, pois os prédios iam até o céu. Naquele dia viram um japonês e passaram defronte de um museu de cera que ostentava as cabeças de alguns políticos e um Lampião muito diferente. Descendo uma ladeira, Livino quis voltar, teve um mau presságio vendo aquela cabeça e chorou. Lampião encostou o punhal sob o queixo dele e disse que se ele amarelasse, empurraria a ponta do “punhá” até o miolo.
“Lampião é prata fina
Livino é cordão de ouro
Quelementino é mala véia
os cabra surrão de couro.”
Lembrando-se de ter ouvido isso na noite antes de desembarcar, voltou a ter coragem de chegar à pensão Europa, onde eram esperados pelo secretário do escritor Oswald de Andrade, que estava ali para cuidar deles.
Naquela noite deitaram cedo, não cansados da viagem, mas da cidade. Antes de adormecerem naquela terra cheia de barulhos estranhos e vazia de sons conhecidos, Livino teve uma visão: Lampião estava assustado, um peixe fora d’água, amedrontado com a cidade, Lampião não falava mais, só era Capitão Virgulino e chefe nos rasos e caatingas. Só era bom para atacar, matar e fugir. Em São Paulo tinha medo de todos porque não tinha cem cabras ao seu redor, só Livino; dependia inteiramente daquele que estudara no seminário menor de Crato e que de lá fugira após uma missa.
Quando o sol saiu, Lampião já estava acordado, porque não sabia dormir em cama, mas gostava do café com leite. Saíram atrás do vendedor de rifles e carabinas.
Lampião tinha que confiar em Livino, e este talvez já não mais confiasse em Lampião. Seu chefe parecia um bicho acuado.
Naquela noite, dois intelectuais paulistas, Rene Thiolliers com o mais famoso poeta de São Paulo da época, foram visitar Lampião, matar a curiosidade e levá-lo para um passeio, para conhecer a cidade.
Levaram-no de automóvel para que apreciasse o progresso e para ver sua reação de bicho-homem. Lampião, porém ficou com medo da velocidade, da noite, das luzes e fechou os olhos.
No dia seguinte, Lampião recebeu a visita de Oswald de Andrade e foi mais desagradável ainda. Nada respondeu para aquele homem afável que o trouxera para a capital, e quando o mesmo perguntou se estava gostando da estada, disse que não.
Neste mesmo dia à tarde, finalmente, em um armazém da rua Bom Pastor no Ipiranga, um vendedor atendeu um homem que entendia muito de armas e tinha amor por elas. A um não interessava quem era o outro. O negócio foi feito, o sinal dado.
… Uma carabina para Mourão, dois rifles para Zabelê, um outro para Volta Seca, um fuzil para Cacheado e Caracol …
… Uma parabelum para Corisco, para Comadre Dadá uma garrucha.
Lampião queria armar cem cabras. Dizia que com cem homens ele dominaria da fazenda Arrasta-Pé, na margem baiana do São Francisco, até Santa Luzia em Sergipe, ou além; toda a Serra do Araripe seria dele.
Comprara vinte e cinco mil projéteis. Tudo seria entregue em Goroso, cidade à margem esquerda do São Francisco.
Lampião comprara para si uma automática alemã, que azulava de tão nova e guardou-a na cintura.
‹ Pronto Livino, sinto-me melhor. Agora vamos comprar uns ouros de presentear Maria Bonita e vamos para Aparecida pagar uma promessa.
A viagem de trem para Aparecida é outra história. Cabe depois contar. Lampião, que era dono de mistérios, assistiu à missa, rezou de joelhos, acendeu velas e comprou duas centenas de medalhinhas da Padroeira para beatificar o sertão.
Na volta para seu bando, o Cangaceiro levava uma foto de lambe-lambe que amarelou com os dias, com o calor infernal.
Nesta fotografia estavam ambos, Lampião com a mão no ombro de Livino e a velha Basílica ao fundo.
Entretanto, Lampião regressou só para o sertão. Fez Livino rezar as orações das nove almas e depois sangrou-o, quando não precisava mais dele, o ex-seminarista de dezessete anos, que um dia fugiu de Crato para segui-lo até São Paulo.
Livino cometeu um pecado: percebera que Lampião sentira medo e fora um fraco uma vez em São Paulo. Isso foi o suficiente para condená-lo.
Não se sabe se Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, conseguiu reunir uma centúria de demônios, se as armas chegaram às suas mãos, mas soube-se que Maria Bonita tornou-o pai naqueles dias, ganhou vários presentes e mimos dele, anéis de ouro, com pedras e pérolas, cordão de ouro e brincos comprados em uma joalheria famosa na Rua Sete de Abril, mas dentre tudo do que ela mais gostou foi uma sombrinha de seda encarnada.
Lampião disse-lhe que ela ia gostar muito mais do presente se chovesse, e quando ela perguntou-lhe como era São Paulo, ele respondeu que lá não tinha cabra macho, tudo homem meio adamado, e que São Paulo nunca teria cangaço porque lá garoava todas as noites, além de não ter bons repentistas.