Não sei quanto tempo de vida tem uma traça. E esta tem sido ultimamente a minha maior preocupação. Disso depende a sobrevivência dos livros que tenho na estante, resultado de quase quarenta anos de fuçar minuciosamente livrarias e sebos. Não que eu tenha a maior biblioteca do mundo, nem a melhor, mas dá pro gasto, uns 2.000 volumes selecionados.
Pesquisei o que pude sobre a bendita traça, mas dela sei apenas que se trata de um lepidóptero que rói tecidos, papéis, lãs, crina, às vezes até chifres! Mas esta da qual falo tem predileção especial por livros.
Traça:
– Designação comum aos insetos tisanuros, especialmente os da família dos lepismatídeos, espécies Acrotelsa collaris (Frab.) e Ctenolepisma ciliata (Duf.)
– A espécie Tineola biselliella (Humm.), caseira, a que produz maiores estragos.
– A traça cuja larva vive em casinhas chatas, abertas nas extremidades, deslocando-se sobre as paredes (Tineola uterella – Wals), cuja mariposa tem de 12 a 16 mm de comprimento.
Mais nada.
Tahrisa, dizem que vem do árabe. Mas Etimologia não resolve, preciso me aprofundar em Entomologia, palavra bem parecida, mas muito outra coisa: insetologia, traçologia.
Dá-se o caso de haver por aqui uma dessas, que anda comendo meus livros. Palavras, frases inteiras, às vezes exagera e come um capítulo todo. É insaciável essa minha traça. Há um livro do qual só me restou a capa!
Desconfio que ela pertença à espécie Tineola biselliella – Humm., obviamente por causa do Humm…, que me soa uma expressão de contentamento pelo sabor dos meus livros.
E sei que é uma apenas, uma especial e determinada traça. Há traça comum que come tecidos, gruda-se na parede e fica ali inerte, até morrer seca.
Não é o caso desta que estou falando. Esta é muito seletiva. No seu último ataque, devorou grande parte de um George Orwell, 1984, um clássico que não consigo repor facilmente. Já andou comendo dicionários, o mais recente foi um de francês. Fez algum estrago num de italiano, mas se desinteressou rapidamente. É uma traça enjoada, prefere os clássicos, e talvez seja poliglota.
Dentre os livros que ela comeu, há muitos que eu ainda nem tinha aberto, por falta de base sólida para lê-los. Eu, antes de ler alguma coisa, sempre tento saber tudo a respeito do autor, suas idéias, linha de pensamento, para saber do que e com “quem estou falando”.
Ela já superou essa fase, a traça está evoluindo mais rapidamente do que eu pensava. Já anda na minha frente, e eu sei – pelo que investiguei do seu “modus operandi” e preferências – com bastante possibilidade de acerto, qual será sua próxima investida. Camões está na mira dela, eu sinto isso. Fernando Pessoa idem. Já andou por Sartre, Machiavel e Shakespeare. Afora os velhos russos. Deu um breve passeio pela literatura brasileira, mas foi só um aperitivo. Deteve-se um pouco mais em Rosa e Machado. Acho que volta para completar o serviço, pois certamente entendeu que eles estão entre os grandes.
Seguindo seus hábitos, tomei precauções meticulosas: escondi bem um Lusíadas de 1914, um Mário de Andrade precioso, de 1926, primeira edição, muitíssimo querida, amada. E ocultei também alguns outros cujo risco de serem devorados me parece bastante plausível.
Já tentei todos os meios de exterminá-la, a bandida. Naftalinas espalhadas na estante cheiro terrível, de velório , espargi líqüidos, névoas de aerossóis de tudo que é marca, aspirador. Examinei volume por volume, e nada!
Acho que ela tanto livro comeu, tanto leu, tanto evoluiu, que já sabe se defender dos meus ataques. Ao longo do tempo tenho matado muitas traças, mas todas quase inofensivas. Num exame que faço por hábito, com uma lupa, no conteúdo das traças que impiedosamente liqüido, não tenho encontrado resíduos dos meus livros. A minha traça permanece viva e atenta, monstruosa, voraz, a esperta.
Hoje acordei disposto a dar um fim nesta história. Retirei todos os livros da estante para ministrar um produto que me asseguraram ser mortal. Uma espécie de kryptonita para supertraças. Infalível.
Ao retirar um último lote de livros, me deparei com uma traça diferente, gorda, branquíssima e reluzente, mas imóvel. Mexi nela para ver se estava viva.
Estava morta e, pelos indícios que apresentava, sua morte se dera já há algum tempo. Impossível ser efeito do que eu acabara de aplicar, não houve tempo para o veneno agir. Mistério. O que teria havido?
Mas era ela, nenhuma dúvida, era a traça maldita! Finalmente exterminada.
Ao seu lado, parcialmente devorado, um livro do Paulo Coelho.
Bem feito!