Os gênios saem mais cedo

Sábado, meio do dia, lá vou eu para São Paulo, trânsito tranqüilo…
Levo meu filho para os vestibulares da vida, mais um exame. Uma maratona interminável.
Desta vez na PUC, lá nas Perdizes…
Estamos chegando cedo. Pra variar me perco, fico dando voltas, mas acabo chegando. Gente que não acaba mais. Adolescentes: meninos e meninas, cada uma mais bonita do que a outra, há uma prevalência de lourinhas, lindas, os cabelos lisos e compridos, cheios de reflexos dourados. Arrebitadas, calças justas e saias curtíssimas, as pernas alvas das paulistanas. O Nabokov ficaria tonto, seu queixo bateria no chão, babaria como um cão enraivecido. (Interessante, vi mais fumantes entre as meninas do que entre os garotos).
Todos entusiasmados, amedrontados e pressionados pela obrigação de passar no exame. Um ano de cursinho, e o teste, para ver se valeu a pena perder dias de clube, de piscina e de barzinhos, em cima dos livros.
Uma imensidão de garotos e garotas. Um burburinho, engarrafamento nas proximidades da escola.
Se tudo isso for gente inteligente, nem tudo neste mundo está perdido.
Pais mais comodistas querem levá-los até a porta, os rebentos não podem andar nem alguns metros, talvez para não gastar nenhuma gota da energia acumulada para a prova.
Os carros começam a buzinar.
Há xingamentos. Mas nada acontece de grave.
Os pais orgulhosos, os filhos de olhos brilhantes, todos são gênios, burros são os filhos dos outros. Há também tios e avós, há motoristas trazendo o filho do patrão, mas o que mais há é pai. Vindos de todo canto, pais de agasalho de ginástica, de bermudão, de celular pendurado, a cara cansada de quem trabalhou duro a semana inteira e ainda vem trazer os gênios para a escola. Toda a esperança dos pais nestes filhos.
Entrego o meu à sua sorte e fico zanzando pelas redondezas, ele caminha firme em direção ao seu destino. Está confiante, que bom!
Vou a uma livraria próxima e vejo livros, folheio, mas não compro nada. Vejo um que eu podia levar de presente para alguém que gosta de História: ³As Barbas do Imperador², sobre o segundo reinado, centrado na figura de D. Pedro II, mas eu não sei se a pessoa já o tem. Tento ligar pelo celular, sistema sobrecarregado. A ligação não se completa. Em São Paulo celular nunca funciona. Desisto, talvez eu ache o livro lá mesmo em São José.
A livraria está fechando, é sábado, me lembro de repente. Saio. Caminho uns cem metros e quase piso em algo, é um par de óculos femininos. Deve ser de alguma estudante – não, a armação é muito discreta, talvez de uma senhora um tanto circunspecta. Retorno à livraria, mas já está tudo fechado. Guardo no bolso, alguém vai procurar desesperada aqueles óculos. Perder coisas é um enorme aborrecimento, eu sei. Amanhã, se a livraria estiver aberta, deixo lá.
Volto para a porta da escola.
Chove forte.
Escondo-me sob uma marquise, e fico observando, meio perdido, aquele mar de cabeças de adolescentes, vagalhões deles que arrebentam nas portas da PUC. A bruta esperança na cara. Olho, como todo pai olha, pressuroso, o coração a um tempo apertado e esperançoso…
Se ele não passar, a culpa é do cursinho, ou da prova, o exame é burro, assim como são burros os que o elaboram.
Acho um bar cheio de pais falantes, entro. Há uma euforia, um ar de festa, chopes sendo trazidos pelos garçons, salgadinhos. Examino o cardápio: só sanduíches, porções de fritas, refrigerantes e cerveja, uma lista de sete marcas de uísque, nenhum vinho – vinho em lanchonete? Nunca! Encontro o velho Jack Daniel¹s.
Não como sanduíche, é coisa de menino, comida de americano.
Mas não sou tão xenófobo, peço o uísque. Alguns minutos e o garçom volta:
– Não temos. Escolha outro.
Eu não estava mesmo acreditando que tivessem.
– Então me traga um Ballantine¹s, tá na lista – e ele volta ao balcão do fundo.
E vem de novo:
– Também não temos, só temos Old Eight.
– Praquê serve esta lista? Não tem nada. Me traga qualquer droga.
– É pra já.
Bar de estudantes, nem comida de gente nem uísque decente.
O uísque vem, finalmente. É amargo e ardido, terrível, mas bebo assim mesmo. Enquanto me refaço do primeiro gole, examino o bando de pais: meia idade, cabelos embranquecendo, alguns carecas, barrigudos, caras de pessoas bem sucedidas na vida, não vejo nenhum com cara de pobre, a pobreza deixa marcas indeléveis. Classe média, alguns da alta, nota-se pelos carros. Na certa alguns estranham eu estar bebendo uísque naquele boteco de garotos, às quase três da tarde. Peço uma água mineral, qualquer uma, mesmo sem gás. Para minha surpresa eles tinham água com gás.
Tomo o meu horroroso uísque devagar, pra gastar o tempo. A espera vai ser longa. Faço uma enorme cera, e peço mais um. Nesta altura, pára de chover, o sol se abre, o calor abafado, úmido. Já não vejo tanta euforia na cara dos pais. Alguns cochilam nas mesinhas, cabeceiam, despertam espantados; outros já foram para os seus carros e dormem de boca aberta. As horas são muito lentas.
Ando sem nenhum objetivo. Não há nada para fazer, súbito me lembro do livro que trouxe. Sento-me no muro baixo da escola e leio um conto do Lima Barreto, um do Mário de Andrade e um que eu desconhecia, um tal J. Simões Lopes Neto, vazado num gauchês descarado, bonito.
São quase quatro da tarde. Alguns meninos e meninas já estão saindo da prova. As expressões cansadas nada revelam, os olhos antes espertos, agora são febris como se ainda estivessem num transe.
Devem ser gênios ou bestas, porque só estes dois tipos saem mais cedo. Um, no qual eu presto muita atenção, me parece ser um dos bestas: orelhas de abano, o cabelo como se cortado a facão, bermudas pelo meio da canela, a camiseta amputada nas mangas, arrancada, ainda se vêem os fiapos. Ele é feio, tanto quanto abraçar a mãe com pensamentos edipianos. Este, provavelmente, estará na lista dos primeiros colocados. Nunca sei quem é e quem não é…
Eu nunca acerto.
Vestibular é mesmo um mistério…