Era um caso simples para a Santa Inquisição.
Haviam feito prisioneiro na aldeia um desgarrado da Fé que era acusado de feitiçaria, e de cometer as mais sórdidas abominações. Trouxeram diante do Inquisidor designado, pessoas mui piedosas que testemunharam naquele processo, e que ofereceram fatos e acusações terríveis que foram resumidos desse modo: que aquele homem residia numa choça na floresta há muitos e muitos anos; que nunca disse palavra e seu nome não era conhecido; que o tempo não agia sobre o seu corpo, sempre parecendo jovem; e que era suspeito de praticar sortilégios diabólicos que afligiam a comunidade, tais como impotência nos homens, infertilidade nas mulheres e outras coisas execráveis.
Como aquele homem permanecia sempre em silêncio, o Inquisidor – movido pela mais sincera compaixão e prudência na observação das bulas e dos decretos, e como estava cheio de boa vontade em salvar uma alma desafortunada -, determinou que fossem exibidos os instrumentos de tortura que haveriam de demovê-lo do pecado. Todavia, o homem continuou demonstrando indiferença, e o Inquisidor declarou-o herege e feiticeiro endemoninhado, mandando que o verdugo exercesse o seu ofício. O qual, durante um dia e uma noite, aplicou diversas torturas com os mais variados utensílios, fraturando ossinhos dos pés e costelas, rompendo nervos, queimando mucosas e decepando dedos e orelhas. E para grande tristeza e consternação de todos, em nenhum momento a criatura emitiu algum som ou gemido, e nem demonstrou ânimo de converter-se à verdadeira Fé ou provar sua inocência. Em verdade, quando foi levado pela última vez ao Inquisidor, aquele homem alquebrado e ensangüentado ainda exibia soberba e parecia estar se divertindo com a coisa; e com êxito verdadeiramente lamentável provocou escândalo em todos nós. Porquanto não passava de um desagradecido dos benefícios do Altíssimo, um feiticeiro entregue a práticas maléficas de encantos e conjurações e de outras ofensas hórridas, aquele varão foi, não sem mui ardente caridade, condenado a perecer pelo fogo em praça pública para expiação de seus pecados e salvação de sua alma.
Os lábios do algoz deformaram-se num sorriso de dentes putrefatos, e com fervoroso deleite meteu brasas na palha e lenha secas onde jazia o condenado. O povo berrava e aclamava ao Todo-Poderoso sua sabedoria e paciência na justiça, enquanto o Inquisidor proferia bênçãos e imprecações.
E eis que, no meio daquele povaréu ruidoso, o homem que ardia se desfigurou e surgiram de suas costas duas imensas asas brancas tão grandes e resplandecentes que parecia que o fogo havia apagado. Todos ficaram petrificados diante de tanto luzir. O homem ficou do tamanho de um gigante, todo inteiro e bem firme, e trazia na mão direita uma espada de ouro que decerto pertenceu a um rei poderoso e antigo, com a qual, diligentemente, atravessou um a um dos que estavam ali: os homens, as mulheres, as crianças e os velhos. Todos tombaram. Até os cães e as pulgas não foram poupados.
O Inquisidor, com o mais puro terror estampado na face, e debaixo do olhar lampejante do monstro, se liqüefez numa massa de excrementos, dando urros de dor e de sofrimento atroz. Por fim, aquela criatura se precipitou sobre o carrasco, arrancou-lhe os dois olhos e deu-lhe um beijo no rosto, onde ficou uma úlcera morfética. E disse: “Tu sobrevives, e darás testemunho de tudo o que viste hoje”.
Oh azar! Depois de tantos processos, depois de tantas sentenças pronunciadas na defesa da nossa Fé, justo naquela aldeia miserável foram tentar prender, torturar e condenar o próprio Satanás!
“Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e Redentor meu!”. Que todos vejam os meus olhos mortos! Que todos vejam como a lepra me desmancha! Sim! Eu… eu sou o carrasco que o diabo lambeu…