Medo

Eu tenho medo de sofrer – Ela disse.
E lançou por terra, com aquela simples frase, todos os sonhos que ele trazia no peito. Com aquela frase tinha colocado a situação num plano real. Ou tinha sido ele o responsável por aquela realidade que de repente os tomava? Tinha sido ele o responsável por transformar em real a brincadeira que vinham chamando de amizade? Só podia ser ele, afinal, quem inventara a tentativa de beijo? Senão ele?
Meio ofegante, passou as mãos pelo cabelo, não sabia o que fazer.
Conheciam suas próprias histórias e começaram a amizade justamente por isso. Sabiam-se frágeis, incapazes de aprofundar relacionamentos mais íntimos. Mas então o que era aquela troca de olhares, toques e carícias no bar intimista em que ele a levara? O que era esse riso fácil diante da companhia um do outro? O que era essa alegria de estar com alguém confiável?
Sabia que queria beijá-la, mas sabia que não queria pensar no que esse comportamento levaria. Ainda havia muitas questões dentro deles a serem resolvidas.
– Ah! Saco! ­ praguejou
Numa tentativa de desculpas ela começou:
– Eu…
– Não, desculpe, não é você que é um saco ­ ele disse ainda meio contrariado ­ Você não acha que tá hora de ter coragem?
Coragem! Quem era ele para falar de coragem? Era o maior covarde que já conhecera. O que estava acontecendo com ele? Talvez o problema fosse a vontade que o mandava seguir em frente, agora, seguir adiante e provar a boca dela. Uma sede inesperada nos lábios a sua frente, o deixava, assim, dizendo coisas sem pensar.
– Aonde isso vai nos levar?
Existia um gênio ruim perto dela. Com certeza, fazendo com que fosse tão racional a esse ponto. Só podia ser! Tudo no que conseguia pensar era em como a boca dela estava bonita com aquela cor de batom, em como o rosto dela brilhava a meia luz do bar, em como o colo dela se mostrava no decote. Nossa, como era linda!
– Esse batom é novo?
– Não troque de assunto ­ depois de uma pausa ­ Não, é o mesmo de sempre, bom tem um brilho. Qual é? Você nunca reparou no…
– Acho que é o álcool, estou meio tonto. Sua boca está tão bem desenhada hoje
– Nós ainda nem começamos a beber… ­ ela sorriu
Talvez fosse o contato, a proximidade
– Você está carente! ­ acusou em tom de brincadeira
– Pode ser, você não?
Era aquela proximidade, talvez a culpa fosse das mesas minúsculas daquele lugar, que tinha aquela aura de namoro, e de repente estava com vontade de mudar de ares de parar de sofrer e reclamar da vida, desde que tinham voltado a andar juntos essa tristeza de ter sido abandonado estava cada vez mais distante, o riso cada vez mais fácil. Queria estar assim tranqüilo sempre, como se pudesse esquecer que as pessoas gostam de se machucar. Não ela, com ela era tudo claro. Nunca imaginara que aquela proximidade pudesse lhe causar tal sensação. Sabia que ela era linda, mas sempre fora imune a sua beleza, gostava de brincar dizendo que mulheres bonitas eram apenas para serem olhadas, como deusas nunca tocadas. Ela ria. E agora ele caía nesse pecado. Queria toca-la.
– Você está estranho. O que foi?
– Sabia que você é bonita mesmo?
– Ahahahahah, você. Eu vou dizer pro garçom não trazer bebida, já está bêbado… ria com vontade.
Como podia ser isso, sentir de repente uma vontade inacreditável de ter, de estar, de permanecer ao lado de sua melhor amiga. Não, ele não era louco. Senão, não seria amigo dela. Não gostaria de estar com ela. Mas era diferente, até ainda há pouco nunca tinha sentido vontade de beija-la, nem de tocá-la, sua companhia o acalmava, o alegrava. Mas o que era isso agora? Essa sede. Esse desejo. Sua amiga, nas horas de alegria, de tristeza … uma frase surgiu-lhe à cabeça.. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença… começou a rir. Já tinha pensado em casar antes, mas dessa vez havia algo de diferente, havia uma alegria estranha que o tomava por completo.
Ela ainda o olhava como se o achasse louco.
– Casamento, a solução do nosso problema é o casamento.
Ela estremeceu…
– Enlouqueceu de vez? Vou chamar uma ambulância ­ parecia realmente preocupada. Aproveitou a bebida que o garçom trouxe e tomou de um só gole ­ É um teste? Não?
Como ela podia beber e continuar sóbria? Não se deixar envolver por aquela certeza que o tomava. Como ela conseguia se fazer de tonta e não perceber?
– Não! Há quanto tempo somos amigos?
– Sei lá! Você está achando que …
– Você não acha estranho que consigamos nos entender tão bem?
– Não! Ela sorria, como se dali a segundos ele fosse reconhecer que era um louco
– Tá bom! Vejamos… Quantas vezes brigamos?
– Tantas que nem me lembro… – ria com gosto
– Ah! Nenhuma séria…
– Não, você só ficou sem falar comigo… um bom tempo.. continuava achando tudo uma grande piada
– Você foi namorar aquele cara, eu sabia que não ia dar certo… ­ ele ficava sério, tentando achar um elo lógico que a fizesse ver. O engraçado é que agora entendia. Tinha ciúmes, claro.
– Certo! Mas não fiquei pegando no seu pé quando resolveu que a Roberta era a mulher da sua vida. Não gostava dela. E deu no que deu.
Ele começou a rir…
– Eu quase fui preso
Ela estava séria
– E você ri? Quem foi que teve que agüentar suas crises? Nossa!
– Agora sim, eu entendi. Você não? Estava errado o tempo todo, eu nunca quis me matar, nem matar a Roberta. Eu queria que você tentasse me impedir.
Ela gargalhou como se fosse a maior piada do mundo.
– Eu pedi, implorei para você sair dessa… não acredito. É a teoria mais louca que eu já ouvi.
– Eu te amo. Acabei de entender
Ela calou, o riso sumiu do rosto. Os olhos encheram-se lágrimas.
– Isso não é brincadeira, pára tá?
– Não tô brincando.
De repente um estremecimento transpareceu em seu rosto. E ela segurou as mãos dele numa tentativa de se manter consciente.
– Não acredito, você mal termina um relacionamento e já está de olho em outra garota, você… mas não pode terminar de falar. Os lábios se encontraram e ele soube que mesmo que ela fugisse e escondesse e quisesse arrumar motivos para não assumir o que sentia por ele, estava sendo dito com os lábios. O “eu tenho medo de sofrer”, esquecido finalmente.