Silêncio Sepulcral

A caixa dizia que se ingerido seria fatal. Não teria mais jeito. Então era só eu colocar no pão com goiabada que minha mulher tanto adorava. Não tenho idéia de que gosto têm aqueles floquinhos azuis, talvez tenham algum gosto forte e sempre pensei que ninguém comeria assim, normalmente, como vemos nos filmes. Agora que eu preparava o pão, o doce e o veneno, notava o quanto era diferente. Não é que a pessoa vá comer sem estranhamento, mas depois da mordida ­ e basta uma ­ não tem mais retorno. Ao sentir o gosto diferente, o organismo já terá absorvido a substância letal. Já não adiantaria mais correr. Depois da mordida é só esperar que a hemorragia interna faça o serviço.
Tirei o miolo do pão, joguei um pouco dos flocos azuis, cobri com goiabada, joguei mais veneno e cobri com mais goiabada. Uma pessoa com fome, depois de um exausto dia de trabalho, daria uma boa dentada naquele pão. Poderia até dar uma segunda dentada, se a fome fosse grande e, como muitas vezes fazemos, nem mastigamos direito. Uma Segunda dentada e mais certeza eu teria da morte do cônjuge.
Meu coração disparava com a possibilidade. O complicado seria o que fazer com o corpo. Fala-se e ouve-se muito sobre assassinatos, mas pouco se fala no depois. Não tinha experiência com essas coisas e não sabia o que fazer. Enterrar no quintal? Mas e os dias subseqüentes? As pessoas telefonando, querendo saber o porquê da falta repentina ao trabalho. E as crianças? Mais fácil seria dar um pedacinho daquele pão para cada uma também. Resolveria por igual e poderia até, num rasgo de poesia, fazer o simbólico enterro de mãe e filhos, unidos para sempre. Depois de toda essa trabalheira, teria a solidão e o silêncio que tanto busco.
Por via das dúvidas preparei mais pão com doce veneno. Doce morte. Doce silêncio. Não deu certo. Ela não quis pão com goiabada. Come você, ela disse, eu estou com vontade de comer um bife. E agora? Tudo tão friamente pensado e calculado para dar em nada? E todo o meu carinho e amor de estar lhe preparando um lanche para quando chegasse cansada? Senti-me rejeitado. Não está em questão o fato do lanche ser venenoso, pois disso ela não sabia. E se não sabia, pouco estava ligando para mim e meu precioso tempo gasto com o preparo de algo que a alegrasse, nem que fosse apenas por alguns instantes.
A hesitação maior estava no fato de ser descoberto mais cedo ou mais tarde. A gente ouve tanto falar em mortes, mas todas elas são cometidas por desconhecidos que, por causa disso, não precisam se preocupar com as explicações a respeito de desaparecimentos. Sem os corpos da minha família, como explicar o sumiço de todos? Saíram e nunca mais voltaram. A polícia faria buscas e eu poderia terminar meu romance antes de descobrirem que o autor era mesmo eu. Do crime e do romance! Só agora me dei conta de que quem comete crime é também chamado de Œautor¹. Mas não adiantaria me livrar dessas pessoas assim, pois continuaria sendo importunado pela família e pela polícia. Não me deixariam quieto, escrevendo, terminando os últimos capítulos do romance autobiográfico que terminaria com uma mancha de sangue na última folha. O sangue-assinatura do autor. Do romance e do suicídio. Autor de mim mesmo, ou pelo menos do meu fim.
Já comecei a escrever a autobiografia. Faço isso a altas horas e ninguém entende, no trabalho, por que ando tão sonolento. É que trabalho muito nas madrugadas, escrevendo sobre quem realmente eu sou. E eu sou bem diferente desse cara bem humorado e engraçadinho que criei para mostrar para vocês.
Já que não deu certo na primeira tentativa, decidi esperar um pouco mais antes de agir. Preciso treinar… Matar umas pessoas primeiro… Depois eu volto e vou estudar o terreno da minha casa, descobrir onde a terra é mais fofa e começar a cavar enquanto as pessoas dormem. Deixar a cova preparada para o meu dia de glória. Comprarei uma garrafa de bom vinho tinto, desligarei a geladeira e, depois de tudo, em completa solidão, celebrarei a conquista do meu tão sonhado silêncio ­ literalmente – sepulcral.