Quando Seu Alberto casou com Dona Marta, já se foram dez anos, o bairro de São Mateus viu uma grande festa. Ele era o Betinho, motorista da funerária, ela era Martinha, professorinha da escola da prefeitura. Os dois crescidos no lugar, estudaram no mesmo colégio e freqüentaram os mesmos bailes e bares. Se Betinho era um jovem de pouca beleza, o mesmo não se falava de Martinha, esta sim, muito bonita e motivo de disputa entre os rapazes da vila. Dez anos fizeram certo estrago no Seu Alberto, uma barriguinha, que adquiriu com muita cerveja e churrasco com a turma do futebol, e a calvície, que Dona Marta diz ser precoce. Os mesmos dez anos parecem dez meses para Dona Marta, ainda com a mesma beleza, agora mais destacada em seu corpo de “mulher madura”, como dizem as vizinhas de boas e de más línguas, “de fino trato”, como dizem os bons e os maus amigos de Seu Alberto. Mas, bons e maus concordam: casal feliz, dois filhos bonitos que puxaram à mãe. Por tudo isso é que Seu Alberto custa, ainda, a acreditar no que está acontecendo. Não fossem os fatos…
Há um ano que ele vinha notando algumas alterações no comportamento da mulher, pensou que era coisa da idade tantos cosméticos, com trinta e cinco anos ela podia estar querendo adiar o que o tempo, inevitável, destruirá. E o sexo? Contava nos dedos as vezes que fizeram amor nesse período. Justo ela, tão fogosa, antes exigia dele o máximo que um homem pode dar à uma mulher. Toda semana uma roupa nova, e cada vez mais curta, e cada vez mais justa. E cada semana, menos igreja e mais passeio com as amigas professoras. Os meninos reclamando mais atenção, justo ela tão amorosa com os filhos. Reclamar ele não faria. Ah, não! Dez anos sem brigar, não iria provocar uma agora, prometera a sí mesmo que jamais brigaria com a mulher, ele, Seu Alberto, não seria como seus amigos, sempre aborrecidos e contando coisas de dentro de casa, coisas de casal. Ele não!
Chegou mais cedo do que o costume, por conta de uma dor de cabeça, encontrou as crianças com a empregada. Cadê a mulher? “Hoje não leciona, saiu com a Rita, aquela amiga de sempre, disse que ia no shopping, de manhã, e até agora não voltou. Seu filho mais velho piorou da bronquite”. Justamente quando chega mais cedo, que precisa da mulher para um remédio, um chá. E tem dor de cabeça que só precisa de um carinho ou uma boa conversa. O material da escola em cima da mesa, como que abandonado, desarrumado, provas saindo de dentro da pasta, redações infantis e cartas. Estranhas cartas. Ele não era de mexer em nada que fosse da mulher, mas cartas, ainda mais aquelas que pareciam querer se mostrar para ele. Foi lendo, devagar, letra, palavra, linha, parágrafo. Tres cartas e os olhos estatelando mais e mais, a dor de cabeça sumiu, em compensação o peito parecia querer explodir. A empregada percebeu e trouxe um tranqüilizante, feito de maracujá, e Seu Alberto mandou-a para casa. Amante! Desconfiar, desconfiava. Um ano de cosméticos, saias justas, curtas, passeios. Claro que desconfiava. Mas assim, lendo cartas de amor, tratando sua Dona Marta por Martinha, sensuais, delicadas, uma letra miudinha que só vendo, coisa de conquistador mesmo, assinadas por “seu amor”. Meu Deus, como pode? E as datas? Uma por semana, as últimas tres semanas, pelo escrito, tinham sido bem quentes para sua Dona Marta. Muito bem, agora é pensar, ter calma. O que ela pode dizer em defesa? Que é uma brincadeira da amiga? Que essa Martinha é uma colega de serviço, pois que ela é Dona Marta?
Quando ela voltou, encontrou o marido sentado em frente à televisão, ligada no telejornal, calmo como sempre, um beijo no rosto e mostrou a roupa nova. Disse que o shopping estava uma loucura, de tanta gente, por isso que demorou. Seu Alberto disse que gostou do vestido, curto e justo, e ela foi cuidar dos afazeres de casa, jantar, remédio para o filho mais velho, guardou a pasta com os papéis na estante. Nesse momento ele percebeu uma certa hesitação, teria ela lembrado das cartas? Seria só impressão? Depois que os filhos dormiram, ela sentou ao lado do marido e tentou conversar sobre assuntos amenos, esses do dia a dia, os de sempre. Seu Alberto falou que não queria brigas nem escândalos, mas que iria embora em seguida, ela que ficasse com seu novo amor, ele não atrapalharia em nada, dividiriam os poucos bens, a casa, o carro e o dinheiro da conta conjunta, ajudaria com os garotos porque era homem de bem, que jamais abandonaria os filhos, não são culpados da sandice da mãe, que dela não queria mais nada, a não ser uns esclarecimentos. Onde ele errou? O que faltou? Por que não conversou a respeito? Quando conheceu o sujeito ( não quis falar “amante” )? Quem era ele? O que esperava, engana-lo para sempre? Seria passageiro? Já traiu antes? Essas e outras perguntas ela teria que responder, ah responderia sim! E os amigos, parentes, vizinhos, nasceu no bairro, como fica? Alguém sabe do caso? Que vergonha!
Ela só ouviu, não interrompeu, cabeça baixa e lágrimas. Quando ele terminou, ela disse que não era mais dona do seu querer, que nunca o traiu antes, o que sentia era muito forte, sem controle, que o marido era bom homem, que nunca faltou nada, que estava esperando hora propicia para falar, não queria engana-lo, não era passageiro, não revelaria o nome do novo amor ( tinha medo que o marido fosse limpar a honra manchada ), concordava com a separação, viver assim era insuportável, poderiam ser amigos, ainda o amava, mas de outra maneira, assim como se ama um irmão, pediu para ele não contar a ninguém do bairro, nem aos parentes, nem aos amigos, nem ä sua mãe. Ele concordou com um sinal. Ela terminou dizendo que poderiam usar a desculpa da tal de incompatibilidade de gênios. Ele fez que sim.
Ele arrumou duas malas de roupas, com a ajuda dela, e foi de taxi procurar um hotel. Em São Mateus, dizem que mudou para o Parque Novo Mundo, perto da funerária. E divide o aluguel com um companheiro de serviço. Com Dona Marta, aliás, Martinha, só fala por telefone. A empregada leva os garotos na igreja, todos os domingos de manhã, e eles embarcam no carro do pai. Ele espera com a porta do carro aberta. Sete da noite a empregada volta à igreja e pega os meninos, sempre sorridentes.
Quanto a Dona Marta, aliás, Martinha, continua dando suas aulas na escola da prefeitura, continua bonita e usa roupas curtas e justas, nunca a viram com nenhum namorado e mora na mesma casa. Por se sentir sozinha, convidou a amiga Rita para morar com ela. Rita, aquela professora que tem a letra miudinha que só vendo.
Escrito por Mário Jaccoud