Eu morava num lugar muito especial, uma casa pequena num terreno imenso… Uma delícia, não era calçada e quando chovia tinha um barro de fazer gosto, eu adorava. Ao lado da minha casa havia uma vacaria, assim chamávamos aquele pequeno sítio com vacas leiteiras…
Naturalmente vacas fazem suas “necessidades” (forma que minha tia-madrinha usava referindo-se a algo natural tanto no ser humano, como no ser animal )…
Enfim… Essas “necessidades” das vacas quando se pisa com os pés descalços e se tem um pequeno corte dá uma “doença” que eu conheço pelo nome de “mija-cão”… (não me perguntem o que é isso, que não sei…sei apenas que o corte virava uma ferida e que coçava muito) assim me diziam as meninas e meninos vizinhos:
– Tô frito, peguei o mija-cão da Estrelinha (uma vaca simpática que passeava pelo bairro quando não estava dando leite).
Era uma coisa, todo mundo tinha mija-cão menos eu… ficava com vergonha na roda da meninada quando alguém se punha a contar da dor e da coceira do mija-cão… Eu que já era complexada pelo meu estrabismo sentia-me desprezada pelo mija-cão.
Tínhamos o hábito de jogar Betsi nos fins de tarde e eu jogava muito bem, embora de uma timidez profunda, era birrenta e de cara fechada .
Um dia conheci um novo amiguinho, um moleque com uns 12 anos, lindo de morrer, Paulo. Tinha um cabelo liso e negro, um pouco longo pra época, bem mais alto do que a maioria dos outros meninos e, principalmente, mais alto do que eu… (com os meus 9 anos era a mais comprida da molecada da rua e a mais magra…)
Fiquei fascinada pelo menino, principalmente pela rebeldia dos cabelos… aquela paixonite aguda que ninguém sabe, só você , escondidinha lá no fundo do seu coração-criança.
O menino integrou-se rapidamente na turma, era um líder nato, desembaraçado, mandão e foi natural o convite pra jogar Betsi. Eu, desde o momento que ele se candidatou a jogar, deixei de participar. Não achava “feminino”(lógico que não era bem esse o meu conceito da época, apenas achava que não ficava bem uma menina ficar jogando no meio dos moleques). Então passei apenas a assistir, ficar ali olhando, perto…
Numa tarde ele chegou todo enfaixado e com cara triste:
– Não posso jogar, peguei mija-cão..
Meu Deus, fiquei furiosa, até ele pegava mija-cão, assim sem querer e eu, nada….Foi a primeira vez que ficamos mais próximos, os dois assistindo o jogo, sem falar, é claro, mas perto… De vez em quando ele olhava pra mim. Numa certa hora perguntou:
– Você já pegou mija-cão?
Eu, aborrecida como nunca, na maior timidez, sussurrei um não, mas ele já nem mais prestava a atenção. Naquela noite fui dormir revoltada, disposta a tudo, tudo mesmo. Tinha que pegar o mija-cão de qualquer jeito…
Levantei cedo e peguei a gilete de meu pai e fiz um pequeno corte no calcanhar e tratei de procurar as “necessidades” da Estrelinha…. Procurei, procurei e achei uma enorme, ainda quente… fresca, seria bem o termo. Não tive a menor dúvida, esfreguei o meu pé com toda a força, esperança e paixão dos meus nove anos…
Dois dias depois comecei a sentir uma dorzinha enjoada no calcanhar e uma coceira horrorosa… Quase morri de satisfação… não acreditava e pensava: desta vez peguei o mija-cão…
Dito e feito… três dias depois meu pé estava uma bola, enorme, uma dor incrível e uma coceira cruel… Quando minha mãe notou ficou preocupada e me levou na farmácia… e foi com grande satisfação que escutei o farmacêutico dizer:
– Nunca vi um mija-cão tão grande… a coisa tá feia, vamos lancetar…
Eu berrei como uma condenada, tirar o meu mija-cão, nunca, jamais… fiz tamanho escândalo que a pobre da minha mãe não teve jeito, me levou pra casa e gastou uma nota de penicilina…
Evidentemente ansiosa me aprumei toda e fui pro jogo de Betsi, louca pra que o Paulo visse o meu mija-cão….
Lá estava ele, com os cabelos lisos rebeldes no olho, alto, jogando…nem me viu chegar… Depois de ficar bem umas duas horas fazendo de tudo pra que ele notasse o meu mija-cão (cheguei a ficar na frente dele e tomar uma bolada), finalmente ele me notou e sem olhar pra mim, prestando atenção no jogo, disse:
-Você pegou mija-cão?
Eu delirando de felicidade, provavelmente com os olhos brilhando respondi, timidamente:
-Peguei sim…
Paulo parou um segundo olhou pra mim e disse:
– É feio menina ficar andando descalça na bosta de vaca… tenho nojo….
E, com a cara de nojo, deu uma belíssima tacada e, eu, com cara de tacho, voltei pra casa, mancando. Acredito piamente que metade da vizinhança ouviu meus gritos de dor na farmácia, naquela noite, enquanto o farmacêutico lancetava o meu calcanhar…
Assim que tive condições de caminhar voltei pro jogo de Betsi, decepcionada com alguma coisa que não sabia bem o que era… aliás, senti esse gosto esquisito muitas vezes na vida e não foi em função de nenhum mija-cão … ou foi?
Voltei a ser o que era, jogadora de Betsi, birrenta, carrancuda…(uma forma também que achei da molecada não me chamar de vesguinha).
Num sábado, Zezinho, um moleque franzino e menino de recados, (sabe aquele moleque que tudo mundo usa pra dizer isso e aquilo?) chegou de mansinho e sussurrou :
– O Paulo quer namorar com você.
– Eu, tem certeza?
– Sim.
-Como, se não gosta de quem pega mija-cão?
-Mas gosta de quem sabe jogar Betsi.
Não aceitei o pedido de namoro , não sei bem a razão… Mas continuei a jogar Betsi até bem grandinha… E ainda hoje, quando vejo crianças jogando, morro de vontade de pedir pra entrar no jogo!