O Bom Oficial de Justiça

“DIANTE DE MIM, O MERCADO E A MORTE DO MERCADO. FOI-SE A ALMA DA ABUNDNCIA. CADEADOS MUDOS PENDIAM SOBRE AS LOJAS, E O PAVIMENTO DE GRANITO ESTAVA LIMPO COMO UM CRÂNIO DE UM DEFUNTO. MINHA TÍMIDA ESTRELA BRUXULEAVA E ESMORECIA”
(GUEDALI ­ ISAAC BABEL)

Tinha um cartãozinho meio cor de rosa aonde estava escrito:
Mário Sérgio ­ oficial de justiça ­ tel . 33-44-85.
Deixava-o sempre com os porteiros dos edifícios, ou debaixo das portas das casas daqueles que não o recebiam por terror ou por motivo não aparente.
Ana Eliza fazia parte do primeiro grupo; tal como deveriam se sentir os nobres durante a revolução francesa quando viam algum movimentozinho atrás das janelas dos palácios; a ameaça da guilhotina.
Como já era quase século 21, e a jovem senhora de classe média, o sentimento panicado advinha de quando tocava o interfone.”é o oficial de justiça querendo falar com a senhora” – teve uma idéia genial!! Quando estava em casa se fechava no quarto com televisão alta ­ não havia como ouvir o interfone; e se caso ouvisse aumentava o volume: portanto, nunca estava em casa!!
Então os cartõezinhos foram se acumulando com o porteiro.- que sempre os entregava de cara feliz e ar de vingança potiguar.

Mário Sérgio ­ oficial de justiça ­ tel . 33-44-85
Um dia, chegando em casa, sempre olhando a portaria de longe para ver se algum boy de juiz estaria por perto, mal teve tempo de abrir a porta de vidro da entrada.
– Dona Ana Eliza?
– Sim??
– Sou o Mário Sérgio..seu porteiro me mostrou a senhora..tem bem uns 3 meses que venho por aqui…
O porteiro filho da puta odiava a moça (devem ter percebido…) desde o dia que ela reclamou do controle excessivo que o mesmo tentava exercer para com a vida dela ­ e de todos os moradores, é claro!!
Ana Elisa congelou. O que seria desta vez?? Mais uma penhora, audiência, notificação?? Tinha bem uns 50 processos que se acumulavam desde do dia que foi forçada a fechar sua empresa devido ao prosaico fato de alguém resolver inventar que o tal do real valia mais do que o dólar (trabalhava com exportação, empresa pequena e, contratos vinculados ao dólar e despesas em real…).
– Então o quê, seu Mário?? ­ falou já na postura agressiva que aprendeu a ter de tanto levar na cara.
Pelo menos era um homem. As mulheres eram as piores no exercício da função oficial de justiça. Partiam sempre do princípio que estavam tratando com bandidos, cheios de dólares enfiados debaixo dos estofados, tapetes persas (Kilin não vale), obras de arte ­ adoravam perguntar: “aonde guarda a prataria?” ­ e quando viam que nada havia depois de fuxicarem tudo, saiam desconfiadas como se pensassem “essa daí pensa que me engana”.. Tinha horror dessas senhoras; bem, pelo menos era um homem…
– Meu colega já esteve aqui..a senhora recorreu no prazo??
– Não; eu falei pra ele que não tenho dinheiro e estou desempregada.Vai penhorar alguma coisa? Vamos subir que você já vai ver que não tenho nada, os telefones estão hipotecados, a casa também; você faz o que quiser. Vamos?
Falou com tanto ódio que deixou o cara sem fala.
Quase jogou o pobre dentro do elevador rumo ao terceiro andar e aí foi quando verificou que o dito estava em bicas, olhos baixos e constrangido.
Um oficial de justiça constrangido. Com a breca!! Andava muito romântica. Será??
– O SENHOR ENTRE E VERIFIQUE SE TENHO ALGO QUE INTERESSE!!
Empurrou o nojento pra dentro de casa e lembrou do filme holandês sobre essas figuras mesquinhas e teve ganas de assassiná-lo, confessadamente.
– A senhora pinta??
– Sim. Mas não tenho nome no mercado, logo não vale nada pra justiça.
-Vamos em frente?
Mário Sérgio estava neste exato momento extasiado olhando uma tela na qual tinha colado uma foto do princípio do século, da família de imigrantes.
– São italianos?
– São.
– Do sul?
– Não tanto.
– Da Calábria…
– Como você sabe?
Em pleno surto psicótico já estaria imaginando que os pobres antepassados certamente seriam fichados…
– Devido as roupas… minha família também veio de lá… conheço bem esse figurino…
– Você não quer sentar? Disse apontado a cadeira debaixo de outra tela, grandona.
– Você não imagina como fico sem graça quando visito pessoas assim… fico sem dormir, com insônia, vou largar esse trampo assim que me formar em direito. Não dou pra coisa, entende? E você sensível, pintora, podemos ser até parentes… mesmas origens!!
– Você não imagina como eu me sinto. Vivo em estado permanente de pânico ; confesso que odeio seus pares…
– Eu vi que sua empresa..
– Ex..
– Pois é; eu vi que sua ex-empresa tem muitas pendências judiciais. Processos. Vou informar ao juiz que não tem bens para penhorar.
– E o que vai me acontecer. Vou presa?
– Não; apenas morre o processo; e vou fazer mais; os que eu puder já vou informando a priori que não há nada o que fazer.
Ficou muda por minutos enquanto ele garrancheava num papel branco.
– Então vou indo; falou levantando em direção à porta.
– Você quer uma água? (recuperou os sentidos)
– Não, obrigado. Tenho outras notificações..
Foi indo junto ainda incrédula.
– Você então matou este caso?
– É; e outros que eu puder também.
– Então, obrigada e desculpe por minha agressividade…
– Nada disso; fique como está que esta ótimo.Você é ótima pintora.
– Vou mandar o convite pra minha exposição; quero que você vá. Me ajudou muito.Tirou um peso.Tenho muitos…
– Tá tudo certo; tchau ­(está mais alegrinho)
E entrou no elevador. No meio do poço do elevador entre o primeiro e o térreo ouviu:
– Você tem meu endereço??? ( aos berros)
Meteu a cabeça no respirador e berrou;
– Tenho os cartõezinhos!!!
Fechou a porta ainda atônita. Saiu à cata dos cartões com o telefone. Revirou tudo e nada.
Pegou o interfone e ligou para seu antagonista da portaria.
Este, feliz da vida, disse ter mais de cinco.
– Coloque no elevador!!!
Ao chegarem, ficou meio emocionada. Tinham seis e num estava escrito no verso.
“Não fique com medo. Só o que não se resolve é a morte.”
Ainda por cima era um poeta…
A exposição ia demorar.
Tinha de inventar um bom pretexto pra ligar antes…