Um dia, perguntei se ela tinha bebido, senti no beijo de boa noite, ela disse que não. Aceitei a resposta e, talvez por não ter contestado, acabei aceitando outras mentiras e mais outras e inúmeras outras. Ela não gostava de indagações, dizia que era livre, que não precisava mentir, mas mentia. Olhos azuis no rosto moreno. Ela dizia que os olhos eram verdes. Só para concordar, eu dizia que seus olhos eram como o mar, verde e azul. Ela respondia que o mar era sempre verde, eu é que o via azul. Quando eu concordava que o mar era verde, ela me dizia que seus olhos eram azuis. De cor em cor, fui ficando mudo. O arco-íris é preto e branco, quero um beijo. O sol é branco e quadrado, me abrace. A lua negra brilha nos seus olhos castanhos, mãos passeiam no meu corpo. Fecho os olhos e o amor é vermelho. Abro os olhos e ela está nua, linda, gotas de suor colando os corpos, é quando o amor explode numa brancura que só os amantes conhecem.
Quando surgiu em casa, noite de chuva, abracei o vestido rosa e beijei cada fibra do tecido, não queria amar seu corpo e nem saber a cor dos seus olhos. Só percebei que fazia amor quando senti as células vivas em minha boca, a pele branca pulsava no vestido transformado em tapete rosa. Ela me disse que tinha pressa, não dormiria comigo, saiu como entrou, molhada e seca como uma mentira inocente. Caminhou até o carro, os pingos de chuva marcando o vestido.
Seu carro quebrou em frente à minha casa, foi quando a conheci. Pediu ajuda, era um conserto simples. Depois quis entrar, precisava lavar as mãos, disse o nome, sentou, conversou. Sorria muito e me encantava seu rosto de anjo. Bebeu um refrigerante e prometeu voltar no dia seguinte, seu perfume ficou na casa. Quando voltou foi a primeira de muitas noites. Comecei a visitar todas as lojas que podia, em cada vestido via seu corpo, a cada noite um presente que ela usava só para mim. Desnuda, não tirava o colar nem a pulseira, ouro na brancura da pele.
Dela quase não falava, eu só sabia que era casada. As marcas roxas, que vez ou outra trazia no corpo, bem como as manchas pretas em volta dos olhos, denunciavam os tratos do marido. Nesses dias chorava muito e, quando eu sugeria separação, dizia ter medo da reação que o bruto pudesse ter, mais de uma vez ameaçou-a. Eu sonhava, esperando que o destino estivesse do meu lado, que ela chegasse sorrindo e anunciasse a morte do marido, usando o vestido preto que eu comprara… Quase não saíamos de casa, ela temia ser vista em minha companhia, jantar na sala e cada vez mais o cheiro de álcool. Ela prometia parar de beber e eu, é claro, acreditava entre um e outro beijo.
Suas visitas começaram a diminuir. Três vezes por semana, duas, uma, e às vezes, telefonava desculpando-se e cancelando nosso encontro. Foi quando comecei a sentir ciúme, sentimento que há muito tempo esquecera. Numa noite de pouco álcool e muito ciúme exigi que contasse a verdade, um nó me prendendo a respiração. Ela disse que o marido desconfiara e que ficava cada vez mais difícil engana-lo. Eu, a princípio, acreditei. Farta ceia transformando-se em migalhas, passarinho bicando aqui e ali, fartando-se com pouco, ou quase nada.
Quando nossos encontros tornaram-se raros, resolvi segui-la, saber de seu endereço, seu trabalho e todas as coisas que um amante ciumento quer saber. Constrangido, mas decidido, acompanhei seu carro à distância. Entrou num edifício luxuoso após atravessar toda a cidade. Quando a porta automática da garagem engoliu o carro, tive uma sensação desconhecida, algo assim como deve ter sentido um afogado.
A primeira conversa com o porteiro do dia foi rápida e produtiva. No bar, entre o café e o pão com manteiga, perguntei se ele era o porteiro do edifício onde mora a dona fulana. À resposta afirmativa soube que, ao menos, no nome ela não mentira. Alguns dias depois e incontáveis cafés da manhã, meu amigo já me informara da morte do marido, há cinco anos, homem rico, da solidão da viúva, nunca vista com homem, saia poucas vezes, só ou acompanhada de amiga ou parente, mulher séria, a coitada guardando luto por um homem tão bom.
Temendo perde-la, nada disse, esperava com ansiedade suas raras visitas. Ontem, enquanto ela dormia, enfeitando minha cama, procurei em sua bolsa algo que denunciasse sua traição, um novo amante. Nada havia, a não ser uma arma pesada e brilhante que guardei num bolso. Quando acordou disse que a arma era recomendação do marido, para proteção nesses dias violentos. Acreditei, claro. Sá não quis acreditar quando pôs fim aos nossos encontros, o marido desconfiado. Pediu que eu esperasse, iria falar com ele, pedir a separação, o amor que tinha por mim a encorajava, quando estivesse livre me procuraria. As mentiras doendo dentro de mim, feito uma doença sem cura.
Hoje de manhã estacionei o ao lado do seu prédio e esperei. Longa espera, quando percebi a garagem cuspindo seu carro. Segui, guardando distância prudente, o veículo indo em direção à minha casa, cheguei a ter esperanças e até a acreditar que ontem não existiu, que foi só um sonho, um pesadelo. Quando seu carro parou em frente à uma casa, a realidade voltou a tomar conta dos meus pensamentos. Abriu o cofre do veículo e tocou a campainha. Eu já saia do meu carro e me escondia entre os outros estacionados. Vi quando o homem abriu a porta da casa e verificou o defeito. Ela ligou o motor, mostrou as mãos sujas e entrou junto com o estranho. Coloquei-me ao lado do portão e esperei, o ciúme era uma mancha negra que me cegava. Horas depois ela saiu, beijou o homem e abriu o portão. Nesse momento eu atirei, a mancha vermelha tomou conta do peito, o estranho entrou em casa buscando proteção, ela bateu as costas no portão e ainda tentou me abraçar, um passo ao lado e o corpo caiu, de frente, os olhos azuis olhando a calçada. O segundo tiro foi nas costas, outra mancha na pele branca. Antes de voltar ao carro e fugir, ainda tive tempo de rasgar um pedaço do seu vestido , guardei o trapo no bolso, chovia e os pingos marcavam o vestido rosa.
Escrito por Mário Jaccoud